Não é a primeira vez que a dona Lúcia Muria, 72 anos, uma das anciãs do Quilombo dos Machado, localizado na Grande Sarandi, zona norte de Porto Alegre, se vê preocupada com a casa em que mora por conta das chuvas.
Não é a primeira vez que a dona Lúcia Muria, 72 anos, uma das anciãs do Quilombo dos Machado, localizado na Grande Sarandi, zona norte de Porto Alegre, se vê preocupada com a casa em que mora por conta das chuvas. Em 2013, a matriarca precisou ir morar em outra rua na Vila Respeito, que, novamente, foi uma das mais afetadas pelas águas na enchente recorde que assola a cidade desde o começo de maio. Mais distante do "valão", próximo de onde residia, dona Lúcia se surpreendeu com o nível do alagamento: "Nunca vi a água chegar a este ponto", relata.
A zona norte de Porto Alegre, região em que o quilombo está, é uma das que vêm sofrendo com a enchente histórica. Há vilas em que ruas inteiras estão com casas submersas. No último final de semana, a água chegou a baixar; no entanto, com a volta das chuvas fortes no estado desde sexta-feira, 10 de maio, o nível do rio voltou a subir.
A Vila Respeito, onde está grande parte das 265 famílias do quilombo, foi fortemente atingida. Quarenta por cento das famílias tiveram suas casas afetadas pelas águas e precisaram deixá-las, segundo Rogério Machado, o Jamaica, 43 anos, liderança do quilombo. De acordo com ele, os moradores buscaram abrigo nas casas de familiares, amigos e vizinhos que não foram afetados.
É exatamente nessa situação que dona Lúcia e seu esposo, Edenir Santos, estão: há mais de uma semana abrigam em sua sala a família do filho Luismar. “São vários filhos, sobrinhos e netos que estão desabrigados, ficando na casa de parentes, como aqui em casa”, conta dona Lúcia. A família é uma das mais extensas das que compõem o Quilombo dos Machado: somente dona Lúcia possui 24 netos e bisnetos. Alguns de seus filhos e sobrinhos vivem nas ruas da Vila Respeito e na Comunidade Sete de Setembro, onde está a sede do quilombo.
Luismar, pedreiro de 46 anos, precisou sair de casa com suas filhas, Kauane, 19, e Raiana, 14, e a esposa, Daiane Patrícia, recicladora, de 36 anos, porque a água chegou a mais de 1 metro dentro da casa da família. No sábado, 11 de maio, a enchente retrocedeu e ele entrou em sua residência, porém ainda não conseguiu avaliar os danos que a família teve. "Está tudo molhado com essa chuva. Aos poucos vamos separando as roupas, os móveis e ver o que dá para salvar."
Além do abrigo oferecido por dona Lúcia, a família Muria, assim como diversas outras famílias da região, conta com o suporte que vem sendo dado na sede do Quilombo dos Machado. Desde os primeiros dias de maio, a comunidade está sendo um local de amparo, apoio e resistência para quilombolas e inúmeras pessoas desabrigadas na região do Sarandi.
O território, certificado na Fundação Palmares desde 2014, está na luta para garantir sua titulação. Segundo o advogado da Frente Quilombola e do Quilombo dos Machado, Onir Araújo, após os estudos técnicos (antropológico, geográfico, histórico) a comunidade está aguardando a publicação do Relatório Técnico de Identificação (RTDI) para dar sequência no processo. “Sem previsão para titulação, vai levar muito tempo, até por causa do quadro baixíssimo de funcionários do Incra”, prevê o advogado.
De acordo com o advogado, até o momento, o governo federal não ofereceu nenhuma ajuda ao quilombo, nem mesmo para as comunidades tituladas do Rio Grande do Sul. “Não teve nada do governo federal até este momento. Na estiagem de 2023, que afetou fortemente as comunidades, não veio nenhum auxílio para os quilombos. Segue o mesmo quadro agora”, aponta Onir.
Na tarde de sábado, 11 de maio, o telefone de Jamaica não parou de vibrar, com notificações de mensagens que chegam ou ligações. O motivo eram pedidos de ajuda ou solicitação de informações para doações no quilombo. Desde o primeiro final de semana de maio, essa sede dentro do território tem sido a base de apoio aos quilombolas atingidos, aos desabrigados da Vila Respeito e de diversas outras vilas da região do Sarandi, como Dique, Nazaré, União e Nova Brasília.
A sede do quilombo tem sido um ponto de distribuição de marmitas, cestas básicas, colchões, produtos de limpeza e água potável. Além dos produtos de necessidades básicas, de certa forma, também tem sido um local para orientar quem está perdido, com pouco apoio, suporte ou informação da prefeitura de Porto Alegre ou do governo do estado do Rio Grande do Sul.
"O quilombo está cumprindo uma função de existência, resistência e sobrevivência”, conta Jamaica. “Estamos fazendo esse esforço de nos apoiarmos enquanto irmãos, família. É o se aquilombar. A gente, pela gente, com a gente, porque é difícil de vir alguma coisa de órgãos nem digo competentes, mas incompetentes", defende.
Segundo Jamaica, quem tem garantido a maioria das doações que chegam são coletivos e movimentos sociais, o movimento negro, sindicatos, outros quilombos – Família Silva e Kédi – e articulações que vem através das redes sociais. A todo momento chegam carros deixando cobertores, água potável, marmitas, comidas, remédios, lonas, capa de chuva etc.
"O trabalho do governo do Rio Grande do Sul e da prefeitura de Porto Alegre tem sido nos orientar à evacuação. Mandam uma ou outra cesta básica, pois somos um quilombo e é questão humanitária. Mas não recebemos nada de significativo para sustentar nossa resistência comunitária e dar conta das demandas do povo que chega aqui", relata Jamaica.
O esgotamento é nítido no rosto de Jamaica, da sua esposa, Tamires Machado, 34 anos, e daquelas mulheres e homens que estão juntos na linha de frente da base de apoio. Já são em torno de dez dias de constante atenção, pressão e atendimento a diversas pessoas em situações extremas de vulnerabilidade.
Neste momento, eles se concentram na gerência de recebimento e distribuição de doações. Mas, há alguns dias, lidavam com a pressão da possibilidade de a enchente chegar à sede do Quilombo.
No dia 5 de maio, domingo, a informação de que a represa do bairro Sarandi teve seu dique rompido, repassada em grupos de WhatsApp e alarmada por agentes públicos de trânsito e policiais em ruas próximas ao dique, provocou um alerta falso. A orientação urgente da prefeitura de Porto Alegre era de evacuação da zona norte, o que causou pânico na comunidade.
Em pouco tempo, dezenas de carros de apoiadores chegaram ao quilombo a partir de um chamado de urgência para ajudar em uma evacuação emergencial. Naquele momento, o nível de tensão sobre Jamaica foi às alturas, por conta da existência da possibilidade de ter ou não de orientar uma evacuação do território, que hoje é base de suporte a centenas de famílias. Após alguns minutos de choro e correria, uma nova informação: a água extravasou o dique, não rompeu. O clima tenso se acalmou e a evacuação foi reavaliada.
A sede do Quilombo dos Machado se tornou base e ponto de apoio e de distribuição de alimentos. Há uma semana, António Costa, 40 anos, morador da Vila Respeito e dono de uma lanchonete que vendia salgados na frente de empresas do bairro Sarandi, tem buscado marmitas no almoço para levar, de moto, a duas funcionárias que estão abrigadas na casa de familiares no município de Alvorada.
O abastecimento de água potável – em falta nos mercados e distribuidoras e um dos itens prioritários de doação –virou uma crise durante a enchente. No começo da semana passada, a cidade chegou a ficar três dias com 70% das casas sem ter água encanada.
A distribuição de marmitas e água no almoço e no jantar chega até a algumas pessoas que seguem ilhadas na Vila Respeito. Pelo menos duas vezes ao dia os barqueiros Artemis da Silva, 40 anos, e Richard Schmitt, 31, moradores da Comunidade Sete de Setembro, saem da base do Quilombo dos Machado para levar alimentos para as pessoas que não têm como buscar.
“A gente vai fazendo o máximo que pode. Me pedem Pix. Pix não tenho, mas aqui temos comida, um colchão, roupa. E assim vamos se ajudando. Sentimento de família mesmo”, conta Richard, que no último 6 de maio celebrou o aniversário com alguns amigos, na sede do quilombo, entre uma demanda e outra.
A comunidade tem consciência de que os desafios estão só começando.
Quando a água baixar, será possível ver o tamanho do estrago dentro das casas. A reconstrução, ainda sem previsão de quando começará a acontecer, levará tempo e precisará que a força-tarefa e a auto- organização continuem.
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