Cannes (França) – Eu admiro tudo o que Paul Schrader propôs a fazer em Oh, Canada!, apesar de ter uma relação ambivalente acerca da forma como costurou a narrativa e com o próprio resultado final.
Cannes (França) – Eu admiro tudo o que Paul Schrader propôs a fazer em Oh, Canada!, apesar de ter uma relação ambivalente acerca da forma como costurou a narrativa e com o próprio resultado final. A seu modo, é similar a Megalopolis, no sentido de que ambas são obras belas a despeito ou em razão de suas imperfeições e ajudam a refletir a respeito dos autores.
O roteiro escrito por Schrader inicia com um retrato dos momentos derradeiros de Leonard Fife (Richard Gere), um documentarista de guerrilha que procurou expor, a partir de sua obra, a verdade da sociedade em que está. Esse retrato é feito usando forma inventada e patenteada por Leonard, a câmera confessional, na qual o objeto da sabatina interage com a pessoa atrás da câmera, de um jeito freudiano até.
Atrás das câmeras está um ex-aluno de Fife e premiado com um Oscar, Malcolm (Michael Imperioli), mas não é por ele que o biografado decide contar a verdade sobre a sua vida. É pela esposa e parceira Emma (Uma Thurman).
Oh, Canada ambiciona muito em só 90 minutos. É uma obra sobre o cinema como dispositivo incompleto de exposição da verdade, é uma discussão sobre as mentiras que contamos para nós mesmos e para os outros, é uma falsa biografia (na mesma linha de Tàr), é um filme romântico, é uma obra personalíssima de Schrader. É tudo e portanto não é nada. A câmera é a forma pela qual Leonard reagiu ao mundo real, e a menção durante uma aula à obra paradigmática escrita por Susan Sontag (Sobre a Fotografia) é a base teórica que norteia o personagem e que, deduzimos, também Paul Schrader. Quando você registra um instante do tempo (pense na mais célebre fotografia da Guerra do Vietnã), está imortalizando as pessoas fotografadas e até parando o tempo (mais uma associação com Megalopolis).
É natural que Fife queira se despir, em termos de honestidade, em face à câmera, e que não demore para assumir o controle da história, ignorando a lista de perguntas criadas por Malcolm e pela co-diretora Diana em favor de seu relato disjunto e até mesmo incoerente, produto de um câncer terminal. A obra é honesta à condição de Fife, e viaja no tempo através de memórias (factuais ou fabricadas, são memórias e verdade para quem recorda).
No passado, Fife é interpretado por Jacob Elordi (de Euphoria e Priscila), um jovem adulto pai e divorciado da primeira esposa e cuja companheira contemporânea está grávida. Enquanto reflete sobre a proposta do sogro para assumir uma empresa da família, Fife viaja a Richmond e lida com a convocação para a Guerra do Vietnã (da qual desertou rumo ao Canadá). Contudo, o passado não é uma linha reta, é um caminho zigue-zague. Fife não mantém todo o controle do tempo, adormece, desperta, e a confusão é enfatizada por Schrader de um modo elegante: Richard Gere e Jacob Elordi confundem-se como intérpretes de Fife, no passado, Richard senta à cama e o espelho reflete as costas de Jacob. E logo Uma Thurman também aparece no passado mais remoto do personagem.
Para manter a coerência com a percepção do tempo por Fife, Schrader confunde o espectador ainda mais usando não só um dispositivo de enquadramento, mas dois. É o filho do personagem principal que conta a história, e dentro desta, é a confissão diante da câmera que norteará a percepção do espectador. Ele utiliza duas razões de aspecto (tamanho da tela), 4:3 e 16:9, alterna entre lentes e fotografia em cores ou preto e branco. Isto torna a narrativa confusa, sem foco, embora assim também seja a forma como Fife enxerga o mundo. É o que buscamos numa biografia – ainda que falsa –: compartilhar o olhar do biografado. Talvez.
A percepção subjetiva, e posso falar apenas por mim, que assisti a este filme, o meu quarto nessa sexta-feira (17/5), às 22:30, vem com menos elogios do que gostaria, ainda que tenha consciência de que, caso visite futuramente a obra, possa alterar a avaliação. Porque, de fato, tem alguns aspectos que, durante a elaboração do texto, já saltaram positivamente para mim: o romance entre Emma e Fife, encenado atrás e ao lado às câmeras, não de uma forma necessariamente carnal e apaixonada, ou a discussão etarista, que apresenta Richard Gere no auge de 80 anos, decrépito na cama e dependente de cuidados, mas cujo corpo fragilizado não é rival de seu conhecimento e de sua mente efervescente que procura exercer um domínio sobre a imagem criada.
Bem além, Oh, Canada! é ainda um exercício satisfatório de forma e estética. Existe um prazer voyeur em enxergar a maneira com que Paul Schrader enquadra seus personagens, constrói os planos, acenando a clássicos de antes e mantendo uma coerência com sua obra contemporânea (Fé Corrompida ou O Contador de Cartas). Não consigo desgostar de filmes iguais a esse, produzidos com um amor e respeito hoje raros pela arte. Prometo revisitar na época do lançamento do Brasil.
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