São Roque, no interior de São Paulo, é conhecida como a terra do vinho, contando com tradicionais vinícolas e um roteiro onde turistas podem degustar as bebidas regionais.
São Roque, no interior de São Paulo, é conhecida como a terra do vinho, contando com tradicionais vinícolas e um roteiro onde turistas podem degustar as bebidas regionais. Cerca de 25 km do centro da cidade, longe dos pontos turísticos, está o bairro do Carmo, que abriga o Quilombo Revolucionário do Carmo.
Atualmente, o quilombo ocupa uma pequena faixa na beira de uma estrada de terra que leva às outras casas do bairro. Na outra ponta da estrada está a portaria de um algoz comum entre os quilombolas e o bairro do Carmo: um condomínio de luxo.
A área ocupada por aproximadamente 700 quilombolas é reconhecida como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares desde 2000 e está em processo de titulação. Ela não engloba o bairro do Carmo como um todo, que, embora seja reivindicado como território ancestral, ficou de fora do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma etapa obrigatória do processo de titulação de territórios quilombolas, feito pelo Incra.
Recentemente, o condomínio de luxo, chamado de Patrimônio do Carmo, ergueu um muro nos limites do território que está em processo de titulação. O muro avança pelo terreno de algumas casas dos quilombolas, invadindo parte do território que eles reivindicam como tradicional. Segundo os moradores do quilombo, os responsáveis pelo empreendimento disseram que o muro seria a solução para aumentar a segurança das mansões. Os quilombolas dizem que os empreendedores veem o bairro do Carmo como "um lugar perigoso" e dizem "que os moradores teriam roubado uma das casas de luxo".
Espremidos entre uma linha de trem que corta a região e o muro, os moradores do quilombo se dizem humilhados. Eles veem a construção como um espaço de segregação da área quilombola e do próprio bairro do Carmo, que foi construído em torno de uma igreja de Nossa Senhora do Carmo e das casas de descendentes de escravizados.
A construção do muro foi paralisada há alguns meses depois da pressão dos moradores, mas ficou ali, pela metade, perpetuando toda a degradação que ela já tinha causado. O paredão se encontra no final da rua do Cruzeiro, que tem esse nome por conta de um crucifixo colocado por um padre ali, há mais de um século. Ele toma toda a viela Augusto Pedro Platão, nome do pai de Israel Platão, 59 anos, que sempre morou no Carmo. Ele se diz indignado porque o muro foi construído colado à sua casa.
"O bairro do Carmo cresceu na parte de população, só que não aumentou na área. Agora, os bacanas querem encurralar a gente cada vez mais com esse muro", diz. Andando pela viela que carrega o nome de seu pai, Israel conta que todas as casas ali são de parentes dele, incluindo um quintal de sua falecida avó. Todos foram afetados de alguma forma pelo muro do condomínio, seja por ter tapado a luz do sol ou até mesmo mudado a forma de ir e vir.
A construção passa por baixo da caixa-d'água de Israel e acabou com um pomar que ele cultivava, onde seus netos costumavam brincar. "Eles [os construtores do muro] arrancaram mais de 20 pés de banana, pé de mexerica, pé de laranja, destruíram toda a plantação. É uma coisa que deixa a gente muito triste. Meu neto é nascido aqui, sempre gostou de brincar aqui em cima e não pode mais porque agora tem essas lanças perigosas de ferragem. A minha netinha passou ali, quase se machucou."
Alguns dos pedreiros que foram contratados para construir o muro na fronteira do território em titulação são quilombolas, de acordo com os moradores ouvidos pela reportagem. "A vida da gente é trabalhar aí dentro", diz Givaldo Correia, 56 anos, morador do Carmo. Ele faz reformas e constrói casas no condomínio há quase 36 anos, mas não participou da construção do muro. "Os outros fizeram porque foram obrigados. Se você falar que não vai fazer, o cara te manda embora", comenta.
Israel também não chegou a trabalhar na obra, mas sempre prestou serviços no condomínio Patrimônio do Carmo, como pedreiro. Semanas após a reportagem ter visitado o local, os moradores do quilombo mandaram vídeos de um poste que está sendo colocado junto do muro. Segundo Israel, a estrutura está sendo feita para instalação de câmeras de segurança, que ficarão voltadas para o quilombo. Para Givaldo, o muro é uma forma de tachá-los de ladrões. "Tudo que acontece aí dentro jogam [a culpa] aqui. Então quer dizer que todo mundo aqui é ladrão?", questiona.
A Agência Pública entrou em contato com a diretoria do condomínio Patrimônio do Carmo, mas não obteve resposta até a publicação.
Enquanto Israel lamentava a perda de luz do sol e do pomar que cultivava do lado da sua casa, do outro lado do muro a realidade era outra. Fotos tiradas por drone pela reportagem da Pública mostram casas de alto padrão do condomínio Patrimônio do Carmo, com vastos quintais, todos com piscina, e ruas que lembram os subúrbios dos Estados Unidos.
Uma breve visita no site do empreendimento mostra que atualmente existem 34 imóveis à venda no lugar, que custam entre mais de R$ 1 milhão até R$ 2,8 milhões. A única casa disponível para aluguel tem 407 metros quadrados (m²), cinco quartos, duas suítes e seis banheiros. O custo mensal é de R$ 8,2 mil. Um mapa ilustrativo explica que o condomínio de luxo tem área total de aproximadamente 10 mil m².
Quando o empreendimento chegou na região, na década de 1970, a vida dos moradores do bairro do Carmo começou a girar em torno do condomínio. A maioria deles trabalha por lá, em serviços como jardinagem, limpeza e reformas.
Isaque da Cruz, coordenador da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e líder da associação dos quilombolas do Carmo, diz que os terrenos ocupados pelo condomínio já eram habitados por moradores do Carmo e que a área, embora ainda não tenha sido delimitada como território quilombola, é reivindicada como território ancestral. Segundo ele, o empresário Gilberto Daccache seria o maior loteador de terras para uso do condomínio. Além do condomínio, Isaque diz que Daccache também é dono de grande parte das casas e terrenos do próprio bairro do Carmo.
"Ele conseguiu muitas terras na região se aproveitando da falta de instrução dos moradores e oferecendo acordos que não os favoreciam", explica. Dona Maria José tem 73 anos e é uma das moradoras mais antigas da região, tendo convivido com pessoas que foram escravizadas. Ela lembra que, antes da chegada do condomínio, algumas pessoas da comunidade tinham casas no lugar ocupado hoje pelas mansões. "Enganaram as pessoas, fizeram elas acharem que iam ganhar muita coisa. Foram pegando os terrenos e crescendo", diz.
Em 2012, os quilombolas formalizaram a Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo Nossa Senhora do Carmo. Em 2017, eles ocuparam a área em que estão hoje, às margens da estrada Aguassaí, em um processo que chamaram de "retomada do território ancestral". Na época, a prefeitura de São Roque entrou com um processo de reintegração de posse contra os quilombolas, que ocuparam um terreno às margens da estrada.
A decisão diz que a "área onde foi instalada a ocupação faz parte do processo histórico de expropriação que reduziu o território ocupado e utilizado pelos remanescentes de quilombo do Carmo, de seus mais de 2.000 hectares originais, para os atuais 14 hectares compreendidos pela Vila do Carmo". Também afirma que a sobrevivência da Comunidade Remanescente de Quilombo de Nossa Senhora do Carmo "está ameaçada por grandes empreendimentos e especulação imobiliária" e conclui que os elementos não eram suficientes para que fosse feita a reintegração.
Em 2018, o quilombo registrou uma manifestação na Procuradoria da República em Osasco (SP) para que o Ministério Público Federal (MPF) fizesse uma representação contra a Associação Residencial Ecológica Patrimônio do Carmo (AREPC), que administra o condomínio, por colocarem "cancelas em áreas públicas de passagem por territórios tradicionais dos quilombolas".
A passagem por dentro do condomínio dava acesso a uma rodovia importante da região. As cancelas, além do muro, impedem a livre circulação dos quilombolas pelo território. Quem chega ao condomínio de luxo tem que apresentar documentos para poder entrar e é escoltado por uma viatura durante a travessia pela área. O procedimento do MPF foi arquivado em 2020 a pedido dos próprios quilombolas, que preferiram tentar o diálogo com o condomínio para resolver a situação, mas as cancelas nunca foram retiradas.
Gilvaldo Correia, morador do quilombo, diz que teve o carro revistado pelos seguranças do condomínio quando estava saindo do trabalho. "Eu perguntei: 'Vocês são polícia? Vocês têm autoridade para fazer isso? Eu trabalho aqui, nunca arrumei confusão com ninguém, nunca roubei um prego aqui dentro'. Eles falaram que era ordem", conta.
A Pública entrou em contato com o Patrimônio do Carmo e com a Impacto, empresa responsável pela segurança do lugar, para saber sobre os procedimentos usados pelos agentes. Marcos Garroti, atual diretor de segurança da AREPC, disse apenas que a associação de moradores "conta com espaços públicos e privados, pelos quais a Associação é responsável pela sua manutenção, limpeza, preservação e segurança". O diretor informou que "a associação tem a prerrogativa concedida pela prefeitura de acesso controlado, desta feita, todas as pessoas que acessam o residencial, como pessoas que farão travessia, visitantes dos associados, e até mesmo os associados, passam por este controle". Ele também diz que "não existe a necessidade de escolta e o que ocorre é o acompanhamento de pessoas que farão a travessia e que as rotinas de segurança são definidas em conjunto pelas empresas de segurança e Diretoria Executiva" do empreendimento.
Perguntado sobre as revistas em carros, o diretor respondeu que isto ocorreu "há mais de cinco anos", por outra empresa contratada para segurança, que não atua mais no condomínio.
Atualmente, o processo de titulação do quilombo do Carmo está na fase de finalização do RTID, com conversas com os moradores e a definição dos limites da área que será titulada. Hoje o bairro do Carmo tem cerca de 16 hectares, a área pleiteada pelo quilombo no Incra tem 357 hectares. Ela é dividida em dez glebas. O condomínio de luxo não está na parte que os quilombolas estão pleiteando, mas o muro fica nos limites de uma das áreas em processo de titulação.
Os moradores do bairro do Carmo e as pessoas que hoje formam o Quilombo Revolucionário do Carmo são descendentes dos escravizados que pertenciam à Ordem de Nossa Senhora do Carmo, da Província Carmelita Fluminense (PCF), que possuía uma terra de 2.175 alqueires, cerca de 5.263 hectares, parte por concessão de sesmaria do governo português e parte por dote, segundo informações do Mapa dos Conflitos – Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, que busca listar territórios onde os riscos ambientais afetam as populações e tornar públicas vozes que lutam por justiça ambiental.
As pessoas que eram escravizadas eram chamadas de "escravos da santa", uma forma de tentar desvincular o nome da igreja do processo de escravização. A ordem arrendava seus escravizados para fazendeiros como uma forma de arrecadar dinheiro para se manter.
Segundo Isaque, a história de como os escravizados do Carmo ganharam direito sobre as terras começa com uma dívida da ordem. "Já tinha acabado a escravidão no Brasil inteiro, mas aqui não. Continuaram escravizando e se favorecendo durante 15 anos, ganhando dinheiro com isso. A Coroa portuguesa descobriu e falou que não ia mais comprar nada deles e que eles deviam um tanto de imposto", explica.
Como a Igreja não tinha como pagar os impostos, foi feito um acordo com os escravizados: eles iriam trabalhar durante 20 anos em Bananal, cidade paulista mais próxima do estado do Rio de Janeiro, com a promessa de que, quando voltassem, as terras da fazenda Icaraí e da fazenda Sorocamirim seriam suas. Juntas, as duas fazendas tinham uma extensão de 5.265 hectares.
De acordo com a associação quilombola, em 1912 a PCF dividiu as terras em lote para venda, sem considerar os direitos dos negros libertos, com a intenção de expulsá-los do local. Os ex-escravizados resistiram e reivindicaram as terras que eram suas por direito. Em 1919, um acordo judicial foi feito entre as duas partes, as terras dos ex-escravizados foram reduzidas à quarta parte do terreno, ficando com 384,5 alqueires, cerca de 930,4 hectares.
Com a redução das terras, muitas pessoas migraram para cidades vizinhas para tentar uma vida melhor. Nos anos seguintes, muitas terras foram perdidas em acordos sem fundamentos, com pessoas se aproveitando da falta de instrução dos moradores da região.
Desde que voltaram ao seu território tradicional, os quilombolas sofrem racismo, preconceito e violências, muitas vezes dos próprios moradores do bairro do Carmo. "Eles nos chamavam de bandidos e ladrões, saíam do serviço e passavam aqui. Dentro do ônibus eles xingavam a gente de bandidos, ladrões de terra. Para falar a verdade, eles eram manipulados pelo emprego", explica Lucilene Filomena dos Santos, conhecida na comunidade como Filó, que também é coordenadora da Conaq.
Ela relata situações de ameaça durante a ocupação do terreno que hoje está sendo titulado. Quando chegaram ali, tinham medo que colocassem fogo nos barracos durante a noite. O filho dela foi espancado quando voltava de um treino de futebol. "Quando ele estava subindo de volta [apontaram] 'o neguinho ladrão de terra'. Estavam batendo e enforcando ele."
O filho de Isaque também sofreu com ameaças e agressões físicas. Quando contou que morava no quilombo e era filho da liderança do local, as agressões começaram. "Deram murros no estômago e ameaçaram de morte", conta. Na época, eles resolveram não prestar queixa.
Isaque conta que o Carmo é conhecido como "o quilombo que não quer ser quilombo", pela falta de aceitação de uma parte dos moradores do bairro, que está ligada ao medo de perderem o emprego no condomínio de luxo se apoiarem a luta quilombola. Como o bairro foi construído em torno de uma igreja, o catolicismo também é muito forte, o que torna difícil para a população aceitar que uma ordem católica era responsável por arrendar escravizados para as fazendas.
Embora o quilombo tenha sido reconhecido em 2000, o processo de RTID só foi aberto pelo Incra em 2006, após pressão dos quilombolas e do MPF. Em 2013, o MPF entrou com uma ação civil pública com pedido de antecipação de tutela, determinando que o Incra apresentasse um cronograma das atividades de elaboração do RTID da terra quilombola.
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