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Diretores de A Queda do Céu falam sobre Cannes e o povo Yanomami

Na tarde desse domingo (19/5), Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha apresentaram A Queda do Céu na Quinzena dos Realizadores, documentário baseado no livro co-escrito por Bruce Albert e Davi Kopenawa a respeito da comunidade Watoriki, do povo Yanomami.

Por Em Sergipe

20/05/2024 às 11:07:35 - Atualizado há

Na tarde desse domingo (19/5), Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha apresentaram A Queda do Céu na Quinzena dos Realizadores, documentário baseado no livro co-escrito por Bruce Albert e Davi Kopenawa a respeito da comunidade Watoriki, do povo Yanomami. Após a exibição do filme no Theatre Croisette, o Metrópoles conversou com os diretores na reservada Plage de la Quinzaine des Réalisateurs.

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Confira a entrevista:

Metrópoles – Como vocês entraram em contato com o livro de Bruce Albert e Davi Kopenawa, A Queda do Céu, e quais as dificuldades que vocês encontraram em filmar durante a pandemia?

Eryk Rocha – Eu descobri através da Gabriela, que estava lendo o livro em 2016, e muito impactada e encantada, emprestou-me para ler. Começamos a pesquisa, a elaboração do roteiro e buscamos contato com Bruce e Davi que gostaram da ideia de fazermos o filme. Anos depois, a convite do Davi e das lideranças locais da comunidade, viajamos para filmar a Reahu [festa de funeral] do sogro de Davi. Então, há momentos cruciais: o arrebatamento com a leitura do livro e a viagem à Amazônia, para esta comunidade Watoriki, filmar o Reahu.

Essa experiência e a convivência intensa com este povo foi radical e forte para nós, com uma equipe muito enxuta de 5 pessoas, uma complexidade logística para filmar na Amazônia, sem comunicação ou internet. Em seguida, partimos para a montagem, um processo de reinvenção, no final de 2022.

Há um momento de crise, em que um ancião olha para quem filma e pergunta se os diretores são "o povo da mercadoria" ou aliados. Como foi lidar com essa situação?

Eryk – Existe um trauma de povos indígenas com equipes jornalísticas ou cinematográficas, que viajaram e nunca retornaram. O trauma não é só isso, mas é decorrente da história, do período de colonização. É uma relação complexa, de confiança, cumplicidade e respeito, mas também de questionamento e enfrentamento. Este momento do filme é provocado por Justino, que deve ter sido filmado várias vezes e tem uma desconfiança do que viveu noutras situações. Não só em relação à câmera, mas à história que conta, da família dizimada e do pai envenenado.

E que é a base da crítica feita sobre o cinema etnográfico. O olhar estrangeiro a outro mundo que lhe parece diferente.

Eryk – Fizemos questão de manter esta cena na montagem, porque o maior assunto da narrativa é o embate. Até certo momento, estamos mergulhados na cosmologia, no povo, no cotidiano e na festa, com pinceladas de tensão e garimpagem, mas, em certo momento, isto se rompe e o filme 'vira' com a criação de um ponto de inflexão pela pergunta de Justino e a reflexão sobre o massacre da família dele. A atmosfera do filme muda e inicia o processo da contra-antropologia, com o Davi virando a câmera para nós e começando a falar sobre o mundo branco, o garimpo e os madeireiros, até desaguar e explodir. Você tocou em um ponto interessante, essa fala é a virada do filme.

Talvez porque o crítico de cinema tem isto consigo quando assiste a filmes de uma perspectiva etnográfica, que o público médio não tenha, porque a colonização tirou dos povos originários os meios de contar as próprias histórias.

Eryk – Quando fazemos isto, realizamos um autoquestionamento sobre o filme. Qual é o papel do cinema? Qual o papel da imagem nesta luta, do povo Yanomami, do povo preto, do povo palestino, do povo da periferia etc.? Esta comunidade reflete um elemento maior, apesar de sua especificidade. A fala do Justino é um questionamento sobre o papel do cinema e a relação dos estrangeiros, os cineastas, que viajam para filmar esse povo. O cinema tem o poder de criar uma imagem de mundo, uma imagem deste povo, e que imagem é esta que estamos criando? O que acontecerá depois quando o filme estiver pronto? Iremos levá-lo para exibição? Então, gosto da provocação, porque a frontalidade do personagem coloca o filme em evidência, e nos tira da zona de conforto.

Há uma outra camada interessante, que é o que representa a imagem para o povo Yanomami. Quando o Yanomami morre, todos os rastros dessas pessoas têm que desaparecer, inclusive os rastros das trilhas por onde esta pessoa passou, inclusive o rastro da imagem. Quando um Yanomami dá a sua imagem para a câmera, como acontecerá o apagamento desta imagem quando esta pessoa morrer? É necessário um nível de confiança, para exigir responsabilidade por parte do cineasta.

A fotografia perpetua o momento no tempo, então isso leva à questão: o que fazer com a imagem da pessoa que morrer?

Eryk – Vou te dar um exemplo. Quando exibirmos este filme na comunidade, se por acaso uma das pessoas tiver morrido, teremos que tirar esta cena.

Os Yanomamis sofreram um genocídio, mas vocês tomaram a decisão de não mostrar os agressores e nem incluir menção ao genocídio Yanomami. Para nós, brasileiros, é um fato contemporâneo que sabemos que aconteceu, mas o público do Festival de Cannes pode ser ignorante a esse fato. Como foi tomada a decisão de apagar os traços dos agressores e o contexto contemporâneo para deixar que o público preencha?

Gabriela Carneiro – Eu penso no que o Bruce falou: "Uma vida não é suficiente para lidar com problemas históricos". E nem um filme. Tomamos a decisão de não fazer do cinema uma reprodução de imagens já vistas em outros locais em mídias mais assertivas nesse sentido. Cada imagem de uma criança doente Yanomami é um aspecto a ser considerado, pois é como se a reprodução daquela imagem tornasse o corpo mais doente. A decisão de liberar imagens é para servir à luta naquele momento e para que o povo fosse mostrado em sua potência, em sua beleza, e isto diz mais sobre quem são os Yanomami, ao passo que a exibição da crise sanitária e humanitária que vivem desde sempre diz muito mais sobre nós, sobre o que somos capazes de fazer com um dos povos mais belos do mundo.

Nós entendemos que não havia espaço para imagens iguais às que você mencionou para trazer a dimensão e violência histórica e atual que estão vivendo. Optamos por trazer na forma do som, além do quê a comunidade Watoriki não enfrenta a ameaça do garimpo, então não queríamos criar o que não existe. Então esta presença existe na radiofonia ou na imagem da menina que adoece ou no comentário das mortes de criança por pneumonia, esta imagem chega através da linguagem do cinema.

Existe uma ironia nas filmagens do Reahu que cria uma ligação com o hoje, pois apesar da beleza da celebração, ligamos com o que significa o rito funerário. Você pode elaborar sobre isso?

Gabriela – O Reahu é em homenagem ao sogro do Davi, como o Eryk havia dito, que é o homem que iniciou o Davi no xamanismo e que deu o conhecimento antropológico ao Bruce Albert. É um homem que enxergou, nestes dois, um projeto político que originou o livro. Não queríamos fazer uma adaptação do livro, mas escrever um capítulo cinematográfico do livro, cujo final é a morte dos xamãs. E o filme tem início com essa cerimônia. Não foi intencional, mas aconteceu no meio do processo. Apesar de ser um ritual funerário, não é um ritual funerário propriamente dito, mas é um ritual de celebração da vida, para cantar, dançar e comer juntos, em comunidade. A comunidade somente fala sobre este homem no dia final da festa e nunca mais, e depois choram juntos em agradecimento ao que este homem fez. Este ritual é para libertar o espírito do xamã para que possa ir para o mundo dos mortos e para que os vivos permaneçam vivos, é uma ironia contida na própria natureza do ritual.

Eryk Rocha foi indicado à Palma de Ouro de Curta-Metragem por Quimera (2004) e conquistou o Golden Eye, prêmio de documentário em Cannes, por Cinema Novo (2016). Ele também dirigiu Rocha que Voa (2003), Pachamama (2009), Transeunte (2012), Campo de Jogo (2016), Breve Miragem do Sol (2020) e Edna (2021), que Gabriela Carneiro da Cunha co-escreveu.

Fonte: Metrópoles
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