Nas últimas semanas, os coletes laranja da Defesa Civil se tornaram onipresentes no Rio Grande do Sul, conforme se desenrolava o que já se tornou o maior desastre climático em número de atingidos na história do país.
Nas últimas semanas, os coletes laranja da Defesa Civil se tornaram onipresentes no Rio Grande do Sul, conforme se desenrolava o que já se tornou o maior desastre climático em número de atingidos na história do país. Nos municípios gaúchos mais afetados pelas chuvas, a peça é traje quase obrigatório para prefeitos e até para o governador Eduardo Leite (PSDB) – que trocou sua foto de perfil nas redes sociais por uma imagem utilizando a vestimenta assim que o desastre começou a mostrar sua dimensão sem precedentes.
Mas, por trás dos coletes prestigiados, está uma estrutura de Defesa Civil precária, com baixo orçamento, falta de quadros qualificados, com o comando de aliados políticos sem nenhuma experiência prévia no tema, principalmente em pequenas cidades, ou nas mãos de militares, embora seja uma instituição civil.
A Agência Pública analisou o orçamento empenhado para a Defesa Civil por esses municípios e pelo estado nos últimos três anos. Em boa parte das cidades mais afetadas, o valor destinado para ações da Defesa Civil não representa mais do que 0,01% do orçamento total – e só sobe quando desastres já ocorreram e o município recebe ajuda estadual ou federal para dar resposta aos danos.
As informações orçamentárias foram coletadas no Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi) e nos portais da Transparência dos municípios. Os valores empenhados, recorte feito no levantamento, são os recursos reservados pelos órgãos públicos para efetuar o pagamento de uma despesa. É comum que nem todo o dinheiro empenhado seja efetivamente executado, o que significa que os investimentos na Defesa Civil podem ser ainda menores.
A reportagem mapeou os responsáveis pelo órgão no governo estadual, nas nove coordenadorias regionais e em 20 municípios do estado, incluindo os cinco mais populosos e alguns dos mais afetados pelo desastre deste ano. A lista inclui, além de militares, um pastor, um veterinário e um educador físico de formação. Em vários casos, a função de coordenador da Defesa Civil é acumulada com a chefia de secretarias municipais. Vários órgãos nem sequer possuem site ou telefone de contato.
Segundo dados oficiais, as enchentes deste ano no Rio Grande do Sul afetaram 464 dos 497 municípios gaúchos. Cerca de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas e mais de 580 mil estão desalojadas. Há 161 mortes confirmadas e 85 pessoas desaparecidas, além de 806 feridos (dados de 21/5).
A precariedade de orçamento, estrutura e pessoal qualificado nos órgãos de Proteção e Defesa Civil gaúchos não é exceção: uma pesquisa conduzida pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em 2021 revelou que 59% dos órgãos municipais de Defesa Civil têm apenas um ou dois servidores na equipe, 72% não têm orçamento próprio, 30% não têm computador e 67% não têm um veículo próprio.
O estudo, intitulado "Diagnóstico de capacidades e necessidades municipais em Proteção e Defesa Civil", foi conduzido pelo Cemaden a pedido da Secretaria de Proteção e Defesa Civil (Sedec) do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR).
Com o aprofundamento das mudanças climáticas, causadas especialmente pela queima de combustíveis fósseis e, no caso do Brasil, sexto maior emissor de carbono, pelo desmatamento, os desastres tendem a se tornar mais recorrentes e mais intensos, demandando ainda mais resiliência dos municípios. No cenário ideal, a Defesa Civil nas cidades deveria ser gerida por uma equipe multidisciplinar, com capacidade para articular e coordenar diferentes órgãos nas etapas de prevenção, mitigação e preparação prévia a um desastre, além de resposta, recuperação e reconstrução depois que ele ocorre.
Na prática, não é o que vem ocorrendo.
"Muitas vezes, a Defesa Civil é criada só para falar que existe, mas não se dá condição nenhuma para ela funcionar, muito pelo contrário: as ações dos próprios governos só vão aumentar as condições de risco de um desastre. Quando ele acontecer, a Defesa Civil vai ser incapaz de coordenar as ações de resposta", aponta o coordenador do estudo, o sociólogo e pesquisador do Cemaden Victor Marchezini.
Tanto na Defesa Civil estadual quanto nas nove coordenadorias regionais de Proteção e Defesa Civil do Rio Grande do Sul, o comando do órgão é ocupado por militares. Coronéis e tenentes também estão à frente do órgão na capital, Porto Alegre, e em grandes cidades como Novo Hamburgo e Caxias do Sul, além de Pelotas, Bento Gonçalves e Lajeado. Parte dos oficiais é originalmente da Brigada Militar, a polícia militar gaúcha, e parte é oriunda do Corpo de Bombeiros.
Para a pesquisadora Adriana Soares Dutra, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o comando na mão de militares faz com que a Defesa Civil tenha um foco pouco preventivo. "A nossa Defesa Civil data da década de 1940, num contexto de Guerra Mundial, e desde lá a gente tem uma estrutura muito voltada para o operacional. Não dá para negar que essas pessoas têm um preparo para a resposta aos desastres, mas acaba-se confundindo o papel da Defesa Civil com o do próprio Corpo de Bombeiros", aponta.
Dutra é autora do livro Gestão de desastres e serviço social, fruto de seu trabalho de doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). No processo de realização da obra, ela afirma ter chegado a conversar com profissionais de Defesa Civil que nem sequer conheciam a Política Nacional de Defesa Civil, instituída há mais de dez anos. Na visão da pesquisadora, a condução por militares também acaba por reduzir a participação social, com uma estrutura muito hierarquizada, em que "um manda e o outro obedece".
Em pequenos municípios, o cenário é diferente: saem os militares, entram os indicados políticos, que não raramente acumulam outros cargos.
Em Arroio do Meio, por exemplo, a função de coordenar a Defesa Civil é dividida pelos secretários da Fazenda, Valdecir Crecencio, e de Obras, Cristian Perin. Ambos ocupam o cargo de maneira voluntária.
Em Encantado, quem está à frente do órgão é o ex-secretário municipal de Desenvolvimento, Roberto Pretto, que é veterinário de formação. No município de Guaíba, o vendedor e suplente de vereador Anderson Gawlinski é o responsável pela Defesa Civil do município.
Já em Santa Maria, exceção na lista de grandes municípios, já que é o quinto mais populoso do estado, a Defesa Civil é comandada pelo político Adão Lemos, ex-policial rodoviário federal, pastor, teólogo e coach. A cidade registrou seis óbitos até o momento.
Indicados políticos sem relação prévia com o tema e que acumulam o órgão com outras secretarias municipais estão à frente da Defesa Civil em Eldorado do Sul e Cruzeiro do Sul.
"Grande parte dos quadros da Defesa Civil são mudados [a cada eleição], porque é raríssimo ter um concurso específico", aponta Jordan Henrique de Souza, professor do curso de pós-graduação de Gestão Pública em Proteção e Defesa Civil da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Entre os formados na especialização, está o atual secretário nacional de Proteção e Defesa Civil, Wolnei Wollf.
O cenário apontado por Souza é confirmado pelo estudo conduzido pelo Cemaden em 2021: cerca de 35% dos respondentes da pesquisa estavam no cargo havia menos de seis meses. "Muitos desses profissionais [nos órgãos de Defesa Civil municipais] estão em cargos comissionados ou cargos temporários. Quando a pessoa começa a ficar boa, adquirindo uma experiência, uma formação, ela é trocada", aponta o docente.
Entre 2021 e 2022, apenas 0,05% do orçamento dos 20 municípios analisados foi destinado para a Defesa Civil. O número só cresceu em 2023 porque foi impulsionado por recursos emergenciais do governo federal após as enchentes que atingiram o estado. No ano passado, o valor saltou para uma média de 0,33% do orçamento total dos municípios analisados. No âmbito estadual, de 2022 para 2023 o governo do Rio Grande do Sul reduziu o orçamento empenhado em quase 8%, caindo de R$ 493,8 milhões (0,28% do total) para R$ 454,8 milhões (0,22% do total).
Muçum, banhado pelo rio Taquari e destruído por enchentes três vezes em apenas oito meses, é exemplo disso.
Segundo dados disponíveis em seu Portal da Transparência, a prefeitura local não empenhou um centavo sequer para a Defesa Civil em 2021 e 2022. O cenário mudou em 2023, quando o município foi fortemente afetado pelas chuvas que atingiram o estado em setembro e em novembro. Amparada com recursos emergenciais do governo federal, a administração local destinou quase R$ 1,3 milhão para a Defesa Civil, mais de 1% de todo o dinheiro empenhado no ano.
No ano passado, o município teve 16 óbitos em decorrência dos desastres climáticos. Este ano, apesar de não ter registrado nenhuma morte, quase toda a área urbana da pequena cidade de 4.601 habitantes foi tomada pelas águas e ao menos um terço terá que ser reconstruído em outro local, de acordo com o prefeito, Mateus Trojan (MDB).
O município também é exemplo de Defesa Civil comandada por servidor comissionado: a coordenação está a cargo do atual secretário de Agricultura do município, Rodolfo Pavi. Formado em educação física, Pavi era coordenador do Centro de Referência de Assistência Social da cidade antes de assumir as novas funções.
Outros pequenos municípios que foram tomados pela água nas tragédias deste ano e do ano passado têm cenários parecidos.
Na vizinha Roca Sales, que contabiliza 11 óbitos e seis desaparecidos relacionados à tragédia deste ano, o investimento em Defesa Civil foi de pouco mais de R$ 100 mil anuais entre 2021 e 2022, quando não ocorreram chuvas como as dos últimos meses. Em 2023, com devastação semelhante à de Muçum, o valor empenhado saltou para R$ 2,3 milhões. No município, o órgão de Defesa Civil é coordenado pelo atual secretário de Administração, Silvinho Zart Neto.
A situação orçamentária se repete em cidades como Eldorado do Sul, Arroio do Meio, Estrela do Sul e Encantado. Em Lajeado e Cruzeiro do Sul, em 2023 o aumento de verbas para a Defesa Civil em relação a 2021 ficou em torno de 10.000% – reflexo não de um aumento de investimentos preventivos no setor, mas da necessidade de resposta ao desastre consumado.
Um dos municípios com militares à frente do órgão – o tenente Claudiomiro da Fonseca, do Corpo de Bombeiros –, Novo Hamburgo viu cair o dinheiro empenhado para a Defesa Civil nos últimos anos. Enquanto em 2021 foram empenhados cerca de R$ 720 mil para o setor (0,02% do orçamento total), em 2023 foram apenas R$ 30 mil, uma queda de quase 96%. No ano passado, o sétimo município gaúcho mais populoso empenhou apenas 13 centavos em Defesa Civil para cada habitante. Mais de 30 mil pessoas foram afetadas pela enchente deste ano na cidade.
Os investimentos caíram também na capital, Porto Alegre, onde mais de 150 mil pessoas foram diretamente afetadas pelas águas. A administração local empenhou cerca de R$ 10,7 milhões em 2021 e aumentou o valor em 2022, chegando em R$ 14,1 milhões; em 2023, porém, o investimento destinado ao órgão comandado pelo coronel Evaldo Rodrigues Junior, do Corpo de Bombeiros, desabou para R$ 4,4 milhões, uma queda de 68%. A capital registrou cinco óbitos e nove desaparecidos até o momento. Na região metropolitana de Porto Alegre, os óbitos chegam a 52.
Em São Leopoldo, onde quase toda a população foi afetada pelo desastre deste ano e ao menos oito pessoas morreram e três estão desaparecidas, os investimentos em Defesa Civil caíram 84% entre 2021 e 2023: eram R$ 553 mil, cerca de 0,02% do orçamento total, e passaram para apenas R$ 84 mil em 2023, cerca de 41 centavos para cada habitante. O município, localizado na região metropolitana de Porto Alegre, é o nono mais populoso do estado. A reportagem não conseguiu identificar a origem do superintendente de Defesa Civil do município, Paulo Borges.
Entre as grandes cidades analisadas, a exceção principal é Canoas: o município foi o que mais investiu no setor em números absolutos, com R$ 27,5 milhões empenhados para a Defesa Civil em 2023. O valor representa 33,3% a mais do que o destinado no ano anterior e um crescimento de 111% em relação a 2021. O município, localizado na região metropolitana de Porto Alegre e terceiro mais populoso do estado, é o único entre os analisados que reservou mais de 0,20% de seu orçamento para a Defesa Civil consecutivamente nos três últimos anos.
Quem está à frente do órgão no município é o ex-prefeito de Porto Alegre José Fortunati (PV), que já foi deputado estadual, federal e vereador. O político assumiu o cargo de secretário de Resiliência Climática em abril deste ano, acumulando a função de coordenador da Defesa Civil.
A despeito dos investimentos acima da média, Canoas é a cidade que mais contabiliza óbitos e desaparecidos em decorrência do desastre deste ano. Segundo dados do governo estadual, são 24 mortos e 16 desaparecidos até o momento.
O Rio Grande do Sul é a bola da vez no tema da emergência climática, mas três a cada quatro brasileiros vivem em municípios com mais risco de desastres causados por chuvas, como mostrou reportagem da Pública.
Para que tragédias anunciadas como a gaúcha não se repitam na mesma magnitude, os especialistas ouvidos pela reportagem defendem que os órgãos de Defesa Civil sejam fortalecidos. Isso passa pela realização de concursos públicos, maior orçamento, educação climática e atenção não só na resposta aos desastres, mas em todas as etapas, desde a prevenção até a recuperação.
Um exemplo de mudança necessária é a reestruturação dos sistemas de alertas de desastres adotados hoje pela maior parte dos municípios no Brasil – e que falhou no Rio Grande do Sul.
Para Victor Marchezini, pesquisador do Cemaden e coordenador do Projeto Cope (Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos), "o país precisa de uma política pública de sistemas de alerta centrados nas pessoas". "Não é só receber um alerta por SMS, mas saber quais são as áreas de risco do município, como eu aprendo a monitorar a chuva e o nível do rio. [Em caso de risco muito alto], o que significa, para onde eu tenho que ir, que rota de evacuação eu posso seguir", aponta.
Na visão da pesquisadora Adriana Soares Dutra, da UFF, não basta que as autoridades invistam em sistemas tecnológicos para prever os desastres se a comunicação do risco não melhorar. Um dos caminhos, segundo ela, é o fortalecimento dos Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil (Nupdec), que fazem a ponte entre os órgãos de Defesa Civil e a população em situação de risco. "[O sistema de alertas] não funciona se eu tiver um equipamento absolutamente avançado e não tiver um trabalho comunitário que prepare as pessoas, que crie uma cultura de prevenção com elas", destaca.
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