Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h.
Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
Já vimos esse filme, e o final não foi bom. Um candidato a presidente que se autointitula contra o sistema, desafiando não só as normas da política como as do bom senso – e também as leis –, avança diante de outro candidato titubeante. No meio da corrida, uma tragédia: um "lobo solitário" atenta contra sua vida, ele persevera. Vira herói. Vira mito. Vira invencível.
No sábado, nós, brasileiros, experimentamos um angustiante sentimento de déjà-vu diante do atentado à vida de Donald Trump. Se a muvuca acalorada e o empurra-empurra de Juiz de Fora foram substituídos pela dignidade viçosa dos men in black que cercaram Trump ferido, enquadrando a épica imagem do punho cerrado diante da bandeira americana em Butler, na Pensilvânia, isso só demonstra que por lá a coisa tem que ser mais hollywoodiana mesmo.
Em jornalismo, erra muito quem diz saber o rumo que as coisas vão tomar. Mas o chocante atentado contra Donald Trump deve ser determinante em uma disputa que antes seguia indeterminada. Vendo-o aqui da perspectiva brasileira, parece um grande exercício de otimismo forçado achar que Trump não vai levar essa eleição.
Claro, é verdade que já não estamos em 2018 e que os Estados Unidos de agora não são o Brasil daquela época. Nem Trump é um virtual desconhecido, com um estilo novo e disruptor diante do grande público. Mas é exatamente esse o problema. Desde o começo da pré-campanha, e ainda mais depois do desastroso debate em que Joe Biden demonstrou sua fragilidade, Trump tem sido mais virulento do que jamais fora. Hoje, o candidato Trump é a imagem de Bolsonaro na Paulista, naquele fatídico domingo pré-eleição de 2018, quando, já certo da vitória prenunciada pelas pesquisas, afirmou que os "vermelhos" teriam duas opções: o exílio ou a prisão.
Vamos aos fatos. Na semana passada, antes ainda do atentado, Trump usou sua rede social Truth Social para prometer que vai perseguir todo mundo que, nas suas palavras, participar das "fraudes eleitorais" – chamados de "election fraudsters". Postou: "Eles não têm vergonha! Tudo o que posso dizer é que, se eu for eleito presidente, perseguiremos os fraudadores eleitorais de maneira nunca antes vista, e eles serão enviados para a prisão por longos períodos de tempo". Encerrou a postagem com uma ameaça direta a Mark Zuckerberg, do Facebook: "Nós sabemos quem você é. Não faça isso, ZUCKERBUCKS, tenha cuidado!".
Pouco depois, ele retuitou uma postagem afirmando que a ex-governadora de Wyoming, Liz Cheney – uma das poucas republicanas a abertamente denunciar o seu golpismo –, é "culpada de traição à pátria" e deveria ser julgada por um "tribunal militar" transmitido pela TV. E pediu que seus seguidores republicassem o conteúdo. O fato de Liz ser filha de Dick Cheney, um dos mais influentes republicanos de todos os tempos, ex-vice-presidente sob George W. Bush, só mostra como Trump 2.4 está ainda menos interessado em fazer qualquer concessão – nem mesmo aos caciques do seu partido.
Trump volta à Casa Branca tomado por sede de vingança e sem as amarras de quem pode querer um segundo mandato. Suas palavras já ampliaram ainda mais o fosso moral que separa a política da trapaça, da perseguição – e da violência, como vimos. Seus seguidores e apoiadores estão na mesma frequência. Com financiamento de US$ 100 mil da Heritage Foundation, organização que financia a extrema direita nos EUA, a ONG American Accountability Foundation tem feito muito publicamente um "pente-fino" nos principais funcionários públicos do governo federal americano em cargos não comissionados que podem resistir às políticas de Trump num eventual segundo mandato. Levantam suas afiliações, posts em redes sociais e decisões enquanto servidores públicos para criar uma lista que vai ser publicada com o claro objetivo de promover um grande expurgo quando Trump chegar à Casa Branca. Os principais alvos são servidores graduados do Departamento de Estado, Homeland Security e outras agências que lidam com imigração.
Segundo a Heritage Foundation, a doação foi feita para produzir "relatórios aprofundados e esforços educacionais para alertar o Congresso, uma administração conservadora e o povo americano sobre a presença de atores mal-intencionados antiamericanos infiltrados no Estado administrativo e garantir que ações apropriadas sejam tomadas."
O atentado contra Donald Trump, claro, também acirrou os ânimos da direita mundial, fortalecendo uma coalizão que tem se mostrado mais unida a cada dia, como demonstra o recente CPAC, congresso conservador promovido por Eduardo Bolsonaro em Balneário Camboriú (SC) na semana passada, e o lançamento da iniciativa de unir partidos de extrema direita, que revelamos aqui na Agência Pública.
As principais lideranças dessa nova coalizão foram unânimes em colocar a culpa pelo atentado na "esquerda".
O presidente argentino Javier Milei, que esteve no CPAC, escreveu que "o desespero da esquerda internacional não é surpreendente, pois hoje vê a sua ideologia nociva expirar e está disposta a desestabilizar as democracias e a promover a violência para chegar ao poder".
O líder do partido espanhol Vox postou a foto em que Trump aparece de punho cerrado, diante da bandeira americana, agradecendo a Deus por ele ter sobrevivido. "É preciso deter a esquerda globalista que está semeando o ódio, a ruína e a guerra", escreveu no Twitter (me recuso a escrever "X").
Por aqui, Flávio Bolsonaro e Michelle foram os porta-vozes do clã, relembrando, claro, a facada a Bolsonaro. "A esquerda é assim no mundo inteiro! Sempre tentando resolver as coisas na bala ou na faca! Covardes", escreveu Flávio. "Infelizmente esse é o modo operacional dos nossos adversários", postou Michelle.
Nosso querido Ricardo Kotscho tem razão ao afirmar que a Pensilvânia não é Juiz de Fora e nem existirá um repeteco idêntico ao que vimos com horror em 2018. Mas há que se reconhecer que tampouco Joe Biden tem a garra que Fernando Haddad demonstrou naquela eleição, fazendo uma campanha decente, apesar de ter sido escolhido na última hora para substituir o candidato que, àquela altura, estava na prisão.
A menos que o decadente presidente americano decida tomar uma atitude drástica, desista de se aferrar à nomeação e abrace com entusiasmo sua substituta, desculpem-me, a eleição foi, sim, decidida no último sábado. E Trump saiu vencedor.
© 2024 2024 - EmSergipe - Todos os direitos reservados
WhatsApp: 79 99864-4575 - e-mail: [email protected]