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Grupos empresariais de direita direcionam verbas de reconstrução do Rio Grande do Sul

Com a comoção após as enchentes de maio deste ano, que devastaram boa parte do Rio Grande do Sul, grupos empresariais ligados à direita aproveitaram para captar doações vultosas em nome da reconstrução do estado e escolher os projetos que receberão os recursos – muitas vezes com o aval do poder público e com pouca (ou nenhuma) transparência.

Por Em Sergipe

23/10/2024 às 05:03:54 - Atualizado há

Com a comoção após as enchentes de maio deste ano, que devastaram boa parte do Rio Grande do Sul, grupos empresariais ligados à direita aproveitaram para captar doações vultosas em nome da reconstrução do estado e escolher os projetos que receberão os recursos – muitas vezes com o aval do poder público e com pouca (ou nenhuma) transparência. 

Integrantes desses grupos estão entre os maiores financiadores da campanha de Sebastião Melo (MDB), prefeito de Porto Alegre que concorre à reeleição e está em primeiro nas pesquisas. E não fizeram nenhuma doação à Maria do Rosário (PT), sua opositora.

As entidades são ligadas à elite porto-alegrense, de famílias como a Gerdau, dona da maior empresa produtora de aço do Brasil; e Ling, da Évora, holding bilionária que atua nos setores de embalagens plásticas e metálicas, de não-tecidos (como fraldas) e florestamento, entre outras.

Um dos fundos é o Reconstrói RS, que captou R$ 84 milhões para obras de infraestrutura. A maior parte, R$ 50 milhões, veio da família Ling, e o restante de outras empresas – como Lojas Renner e Porto Seguro –, e de empresários como Salim Mattar, fundador da Localiza e ex-secretário de desestatização do governo Bolsonaro.

A primeira obra financiada pelo Reconstrói RS foi uma ponte ligando as cidades de Nova Petrópolis e Caxias do Sul. Ela foi considerada prioritária por ficar em uma região de alto potencial turístico, segundo a gestora executiva do programa, Sandra Moscovich. Outras 14 obras estão em andamento ao custo total de R$ 10 milhões – 10 são pontes metálicas na região do Vale do Taquari. Os projetos são enviados por associações comerciais regionais e não passam pelas prefeituras.

A ideia é financiar obras "o mais rápido possível" e "sem intermediação", como diz o site do programa, em contraponto às longas e burocráticas licitações de órgãos públicos. Mas quem escolhe como o dinheiro é aplicado é uma banca formada pelo Instituto Ling, a Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul) e o Instituto Cultural Floresta (ICF) – ONG que reúne mais de 50 donos de grandes empresas gaúchas e é próxima à produtora conservadora Brasil Paralelo. 

Neste modelo, as obras escolhidas são as mais interessantes para as entidades empresariais, e não necessariamente as mais importantes para a população.

“Nessa lógica, o doador privado escolhe onde quer investir, onde quer direcionar o seu dinheiro. Ele não quer que a doação vá para um fundo do Estado, que decidirá o que é prioritário de acordo com um planejamento estratégico mais amplo”, aponta o sociólogo Marcelo Kunrath, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Uma de suas pesquisas trata do poder e influência política dos grupos empresariais de Porto Alegre e como eles atuaram para alinhar a cidade à direita.

Outra iniciativa do empresariado é o Regenera RS, que teve um aporte inicial de R$ 30 milhões da Gerdau e R$ 8 milhões da mineradora Vale. O programa foca na reconstrução de escolas e outros imóveis danificados, em programas de educação e trabalhos assistenciais em comunidades das cidades afetadas. Há ainda fundos gerenciados pelo ICF e outros empresários que operam nos mesmos moldes. Somados, os aportes chegam a mais de R$ 200 milhões.

Este modelo, no qual entes privados interferem no planejamento público, é muito parecido com o que a Agência Pública já mostrou há alguns anos, em que empresários do ICF montaram uma "Lei Rouanet da segurança pública" para a aplicação de recursos para compra de viaturas ou munição para as polícias – mas apenas para os locais que eles consideram importantes.

Por que isso importa?

  • Tanto a prefeitura de Porto Alegre quanto o governo do estado abriram mão, em alguns casos, de sua prerrogativa de planejamento estratégico de políticas públicas repassando o poder de decisão para algumas das empresas mais ricas do estado.
  • As obras escolhidas para receber os recursos são as mais interessantes para as empresas – não necessariamente as mais importantes para a população.

Poder público endossou parcerias

Esse poder de decisão do empresariado sobre quais obras seriam financiadas ocorreu também nos projetos capitaneados pelo poder público. Tanto a prefeitura de Porto Alegre quanto o governo do Rio Grande do Sul abriram mão, em alguns casos, de sua prerrogativa de planejamento estratégico de políticas públicas em favor de algumas empresas que estão entre as mais ricas do estado. 

É o caso do projeto Reconstruir Porto Alegre, da prefeitura da capital, que deu carta branca para que empresas escolhessem obras que iriam financiar, sem fazer nenhum tipo de interferência. "A decisão sobre qual equipamento público receberá a doação cabe exclusivamente à empresa interessada, com base em uma lista fornecida pelo poder público", informou, por meio de nota, o Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática da cidade. 

Todos os projetos escolhidos pelas empresas são em escolas da rede municipal. É um bom negócio para as empresas. Elas ganham notoriedade entre o público escolar – que alcança milhares de pessoas, entre pais, alunos e professores. Depois, ainda podem dar publicidade para a doação em seus meios de comunicação e recebem menção nominal no site do município. 

A maior escola da rede municipal, a EMEB Doutor Liberato Salvzano Vieira da Cunha, que atende mais de 1,7 mil alunos, foi adotada pelas gigantes Ambev e Gerdau, que são líderes no mercado de seus respectivos segmentos. As ações são anunciadas continuamente nas redes sociais da escola, e, com isso, as empresas acabam ganhando propaganda gratuita. As obras vão custar R$ 7 milhões – um valor ínfimo se comparado com o lucro líquido das duas empresas, que ficou na casa dos bilhões só no ano passado.

O Sindiatacadista, que reúne unidades da Fecomércio, Sesc, Senac e CNC, financiou as obras das escolas municipais Patinho Feio, no bairro São Geraldo, e a Meu Amiguinho, no Floresta. As duas vão custar R$ 820 mil e atendem pouco mais de 100 alunos. O Instituto Jama, do presidente do grupo JBS, Jayme Sirotsky, pagou R$ 1 milhão para a reforma da escola municipal Vereador Antonio Giudice, no Humaitá, e R$ 1,4 milhão na EMEI Vila Elizabeth, no Sarandi. O ICF financiou R$ 2,1 milhões na EMEF João Goulart, no Sarandi. 

O diretor da João Goulart, Manoel da Silva, disse que foi comunicado pela prefeitura de que o ICF iria cuidar da reconstrução de sua escola. Porém, de acordo com ele, a reforma se limitou ao quadro elétrico. “O ICF está fazendo uma parte das ações de reforma da escola. A projeção que havia, de que eles se encarregariam de maiores espaços, hoje está concentrada na aquisição e substituição do quadro elétrico geral da escola, suas conexões com a rede externa e uma reforma na rede elétrica no prédio da cozinha”, disse.

Inicialmente, a prefeitura tinha uma lista com as obras que precisam ser feitas na capital e estavam abertas para doação de empresas. A lista continha 14 escolas. Seis delas receberam aportes. As outras oito não foram consideradas interessantes. As razões pelo desinteresse não foram divulgadas nem pelas empresas, nem pela prefeitura.

O lançamento do programa ocorreu em um evento na sede do Instituto Ling, com protagonismo do vice-prefeito Ricardo Gomes (sem partido), ligado à Brasil Paralelo desde a sua fundação e apresentador de um quadro semanal transmitido nas redes da produtora. Ele frisou que os valores das obras são repassados pelas empresas diretamente aos fornecedores, sem passar pela prefeitura.

Gomes aparece na pesquisa do sociólogo Marcelo Kunrath como um dos principais elos entre o empresariado e o poder público. Ele tem um largo histórico com as grandes empresas do estado – foi presidente e membro da diretoria de gestões do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) e é amigo próximo dos diretores do ICF. Durante as enchentes de maio, Gomes chegou a pedir doações para o ICF em vez de solicitar à prefeitura que ele próprio comanda. O atual vice-prefeito não se candidatou nas eleições deste ano.

Já o governo do estado, de Eduardo Leite (PSDB), colocou empresas e representantes do setor como membros do conselho do Plano Rio Grande, que trata do planejamento de reconstrução do estado. "O conselho é formado por 178 membros, com forte predomínio da representação empresarial em detrimento de trabalhadores, ambientalistas e da população atingida", analisa Kunrath.

"A reconstrução se constituirá em um processo bilionário, gerando grandes e diversas oportunidades de negócios para o empresariado", explica o pesquisador.

Vínculos políticos 

Pessoas ligadas a estes grupos empresariais não escondem suas posições políticas. Eles estão entre os maiores doadores da campanha do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, que por pouco não venceu a disputa em primeiro turno – ele obteve 49,7% dos votos. 

Os empresários também foram os maiores doadores do candidato derrotado Felipe Camozzato (Novo), que tinha propostas parecidas com as de Melo. Por outro lado, não fizeram nenhum repasse para as candidatas alinhadas à centro-esquerda – Maria do Rosário (PT) e Juliana Brizola (PDT).

Pessoas ligadas ao ICF e a outros grupos que participam dos fundos de reconstrução foram responsáveis por cerca de 25% das doações de Melo no primeiro turno. O maior doador foi Elie Horn, fundador da construtora Cyrela, com R$ 64 mil. 

No Rio Grande do Sul, a Cyrela se uniu com a Goldsztein, que é da família de Cláudio Goldsztein, diretor do ICF – ele próprio foi o segundo maior doador, com R$ 30 mil. Outras pessoas que trabalham na Goldsztein, no ICF ou são parentes doaram outros R$ 93 mil. Membros da Gerdau desembolsaram R$ 32 mil para Melo.

"Essa atuação empresarial apresenta um viés político-ideológico. A 'reconstrução' não é um processo neutro; ao contrário, é um processo no qual estão em disputa concepções de Estado, políticas públicas, relação entre Estado e sociedade, papel do empresariado, cidadania e direitos, e relação com a natureza", afirma Kunrath. "Nesse sentido, destaca-se no discurso empresarial uma constante reafirmação da superioridade do mercado, quando comparado ao Estado, para conduzir a 'reconstrução' de forma ágil, eficiente e eficaz."

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