No dia 30 de setembro de 1975, meu pai não chegou às 18h, como fazia todos os dias, para me buscar na creche da Bela Vista, na rua Humaitá, região de São Paulo conhecida como Bixiga.
No dia 30 de setembro de 1975, meu pai não chegou às 18h, como fazia todos os dias, para me buscar na creche da Bela Vista, na rua Humaitá, região de São Paulo conhecida como Bixiga. Eu havia acabado de completar 2 anos. A cerca de 600 metros do local, na rua Conselheiro Ramalho, perto da avenida Brigadeiro Luís Antônio, Edwaldo Alves Silva, hoje às vésperas dos 80 anos, foi sequestrado pelas forças da ditadura militar instaurada no Brasil de 1964 a 1985.
Eu não sabia desses acontecimentos até a semana passada. Pesquisando locais de tortura para reportagem da Agência Pública, encontrei o depoimento escrito por meu pai em maio de 1976 para uma junta de juízes militares, parte do acervo do projeto Brasil: Nunca Mais Digital. Era sua apelação ao Supremo Tribunal Militar (STM), questionando sua sentença condenatória por "práticas subversivas". Ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN) que vigorava à época.
O tema da tortura também nunca foi um tabu na minha casa, mas as poucas vezes que questionei diretamente meu pai percebi ser um assunto delicado, que preferia não abordar.
"Vou te falar só uma coisa, eles tinham o afogamento, que era enfiar sua cabeça na água até você quase afogar. Nas primeiras vezes, me debatia para tirar a cabeça da água, para respirar. No final, me debatia para que eles não a tirassem da água para o suplício acabar de uma vez", chegou a dizer numa das vezes, encerrando a conversa.
Eu sabia, claro, do passado de resistência da família, de sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) até os primeiros anos da década de 1980. Inclusive, sempre me orgulhei e fui influenciada por sua luta pela democracia e pela justiça social. Tinha ciência de sua prisão e memórias de minhas visitas a ele ainda no cárcere, mas, em especial, sobre sua tortura desconhecia os detalhes – justo eles, onde o diabo mora.
Cheguei a ter em mãos o livro Brasil: nunca mais (editora Vozes, 1985), que traz três parágrafos extraídos desse mesmo depoimento, já impressionantes. Porém, o arquivo tem 11 páginas. Percebi que ele foi sutil, e talvez complacente com a filha. Os fragmentos de história que ouvi da minha mãe, de alguns familiares e até amigos, estudiosos dos "anos de chumbo" do regime militar, foram preenchidos, como um quebra-cabeça, pelo documento.
Naquele fim de tarde de setembro, meu pai foi abordado por homens armados, e teve a cabeça coberta por um capuz preto, antes de ser colocado em um carro, "provavelmente um Volkswagen", relatou.
Ele foi jogado no banco de trás com um homem apertando seu pescoço. A viagem percorreu cerca de 35 km até o bairro Parelheiros, no sul da capital paulista. Aos 31 anos, ele entrava em um dos mais violentos espaços criados durante a ditadura militar: a Fazenda 31 de Março.
"Um rádio ligado a alto volume abafava meus gritos. Arrancaram-me a roupa e inteiramente nu, fui dependurado no pau-de-arara", descreveu. Fiz a primeira pausa. Precisava respirar. Fui conferir: ainda era a página três. "Aplicaram-me choques no corpo inteiro [ ]; recebi fortíssimos choques elétricos na boca, nariz e ouvidos ao introduzirem neles fios elétricos". A descrição se refere ao primeiro de 37 dias de torturas constantes.
No momento da prisão, a Operação Radar (1974 a 1976) estava no auge e seu objetivo era desarticular ou, como descrevem documentos da época, "neutralizar" o PCB. Em São Paulo, pelo menos 11 membros do partido foram alvos da operação.
Os espaços clandestinos de tortura e morte como a Fazenda 31 de Março eram bem oportunos para as "operações de informação" do regime ditatorial. O imóvel foi cedido aos militares para atividades clandestinas pelo empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, posteriormente condecorado pelo Exército com uma distinção de nome irônico: a Medalha do Pacificador. No local, era dispensada a preocupação com o verniz de legalidade que se tentava camuflar.
"Para se ter uma ideia do meu estado, a minha primeira impressão era que eu estava escutando meus próprios gritos. Mas, logo voltando à realidade, percebi que outras pessoas, tal como eu, eram vítimas daquele autêntico inferno."
Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, se tem conhecimento de apenas mais uma pessoa, o advogado e ex-deputado estadual do Rio de Janeiro Affonso Celso Nogueira Monteiro, que saiu viva da Fazenda 31 de Março, além do meu pai.
Nos intervalos entre espancamentos e choques, para que os torturadores pudessem descansar, meu pai voltava para o pau de arara. Nesse ínterim, ele descreveu como um interrogador tentava aumentar o envolvimento dele com o PCB e comprometer mais pessoas.
"Visando-me amedrontar e confundir, diziam que os gritos que eu escutava, eram da minha esposa ao ver minha filha de dois anos ser torturada. No decorrer das torturas ininterruptas, em total estado de desespero físico e mental, comecei realmente a admitir que minha esposa e filha estavam em poder daqueles homens."
Não consigo imaginar crueldade maior com um pai. Quando liguei para informá-lo que havia encontrado o depoimento e pedir sua anuência para compartilhá-lo, a possibilidade de eu estar sendo realmente torturada foi sua primeira recordação. "Foi um dos piores momentos que passei naquele lugar", disse ao telefone.
Na verdade, eu estava segura. Desde o primeiro dia, minha mãe, Zélia Pizarro, percebendo o ocorrido, pediu ajuda a um irmão e fomos para Belo Horizonte ainda na madrugada. Voltamos, pois ela sabia que denunciar o desaparecimento o mais rápido possível poderia salvar a vida do marido. Para isso, buscou ajuda de dom Paulo Evaristo Arns, que já era arcebispo metropolitano de São Paulo.
Meus pais se conheceram no IBGE, contratados para trabalhar no Censo 1970. Com uma beleza clássica, a moça de família tradicional mineira se encantou com o "borogodó" do colega, inteligente, cheio de histórias e um pouco pretensioso, segundo ela.
Ele tinha acabado de chegar de uma viagem à União Soviética, de coração partido. Deixou uma namorada dinamarquesa, lindíssima, segundo o próprio, por lá. Casaram-se em 1972. Cerca de um ano depois, nasci.
Rapidamente, aprenderam a lidar com as atividades do partido. Com o recrudescimento da perseguição, minha mãe contava que tudo era "cronometrado". Se o marido não chegasse na hora, já tinha orientações claras de como proceder.
Com o desaparecimento, minha mãe moveu o mundo para encontrá-lo. Acionou órgãos de proteção e de direitos humanos, a Igreja, amigos, familiares e advogados. Ela chegou a me confidenciar que não se permitiu "derramar uma única lágrima" enquanto não o encontrasse.
Foi uma fortaleza armada, segurando as pontas da casa, da filha ainda bebê, desafiando o poder do Estado pelo marido. Acabaram se separando em 1981, mas, do jeito deles, foram amigos até a morte dela, em 2020, vítima da covid-19.
Aos 14 anos, ingressei no ensino médio, no tradicional Colégio Estadual Central, de Belo Horizonte, por onde passaram do escritor Fernando Sabino à ex-presidente Dilma Rousseff.
Em 1988, nos primeiros anos da redemocratização, a estrutura do colégio ainda era autoritária e militarizada. Professores se gabavam em sala de aula de ser militares, ou membros do Serviço Nacional de Informações (SNI), aposentados.
Acabei me envolvendo no movimento estudantil, na criação de um jornal mural de estudantes e no grupo de alunos empenhados em reabrir o grêmio, desativado pela repressão. Foi a gota d'água para dona Zélia. Em um sábado, ela resolveu me contar o que ela e meu pai haviam passado entre 1975 e 1977. Sua versão tinha partes censuradas, hoje eu sei. Nem por isso, menos marcante.
Se a intenção era boa, a estratégia foi péssima. Para minha versão adolescente, o relato foi motivação maior para me envolver com mais empenho na militância.
Após seis dias, alimentado apenas uma vez "com um prato de sopa rala" e matando a sede quando era trazido à consciência com jatos de água fria, meu pai recebeu roupas novamente. Seria transferido para o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-Codi/SP).
Ele conta em seu depoimento que, vendado e deitado no chão do carro que o transportava, variou entre a convicção de que seria morto e a esperança do fim do suplício. Estava duplamente errado.
Assim que entrou no barracão dos fundos da rua Tutoia, 921, na Vila Mariana, foi despido e apresentado à cadeira do dragão. Nela, o prisioneiro é amarrado e recebe choques em várias partes do corpo ao mesmo tempo. Aquela foi sua rotina por 31 dias. Não encontro palavras melhores do que as dele sobre o período:
"Escutam-se gritos de pavor, durante 24 horas por dia, choros de homens e mulheres. Vi velhos de 70 anos serem brutalmente espancados. Pais e filhos, esposas e esposos e irmãos serem torturados uns na frente dos outros, serem obrigados a torturarem-se uns aos outros. Alguns comparam aquele órgão ao inferno. Eu diria que essa palavra não consegue exprimir todo o horror que sentem aqueles que tiveram a infelicidade de entrar como prisioneiros naquela casa".
Após mais de 50 dias, a incomunicabilidade de Seu Edwaldo teve fim e minha mãe pôde chorar à vontade quando o marido saiu do DOI-Codi. No entanto, considerado subversivo, ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional e encaminhado ao Hipódromo, um presídio no Brás, com presos políticos e comuns. Receberia liberdade condicional apenas em 21 de janeiro de 1977.
No processo de apelação ao STM, há um breve resumo de cada "réu". Nesse processo, foram 76 indiciados. Meu pai é descrito como "dentro deste processo, com Bonfante Demaria [e Antônio] Bernardino dos Santos, a figura de maior atuação subversiva, cuja ação se fez sentir pelo Brasil todo". Seus crimes, arrolados, foram: participar de centros de estudantes e de atividades do partido, atuar como "secretário de Agitação e Propaganda" (grifo deles) do PCB de Santos (SP) e oferecer palestras para universitários Além disso, passou mais de um ano estudando sociologia na antiga União Soviética, entre 1968 e 1969 – talvez o mais grave de seus "crimes".
Edwaldo Alves Silva, 79, retomou ao trabalho, sempre ligado ao planejamento e execução de políticas públicas. Na década de 1980, desenvolveu projetos de urbanização via empresas públicas do Estado de São Paulo, como a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e a Terrafoto. Atuou em diversos municípios como São Paulo, Ribeirão Preto e Caçapava.
Em 1989, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) e participou nas duas administrações petistas em Santos, de Telma de Souza e de David Capistrano. Foi chefe de gabinete do vice-prefeito de Telma, Sergio Sérvulo, entre outros cargos.
Há quase 30 anos, mudou-se para Vitória da Conquista (BA), onde vive até hoje com a esposa, Maione (57), e meu irmão caçula, Pedro (24). Na cidade, colaborou para as quatro administrações do PT nas gestões de Guilherme Menezes e José Raimundo Fontes. Além de mim e de Pedro, tem mais duas filhas, Luana Alves (30), vereadora na cidade de São Paulo pelo PSOL, e a enteada Jade (28), que vive em Maceió (AL).
Antônio Bernardino dos Santos, o "subversivo" que distribuía panfletos contra o regime militar e o jornal Voz Operária, publicação do PCB, também foi vítima de violências muito parecidas com as do meu pai, porém, já tinha 65 anos. Ele me foi apresentado quando eu ainda era muito jovem, como vô Bernardino. Sempre o considerei como tal e, acredito, era querida como neta.
Outro era Emílio Bonfante Demaria, que eu conhecia como Bonfante e que me levou para conhecer o Teatro Municipal de São Paulo, quando a filha bailarina se apresentou naquele palco. Bonfante era comandante da Marinha brasileira e uma referência no sindicalismo marítimo. Viveu até fevereiro de 1999.
Essa comunidade envolvia também Jayme Rodrigues Estrella Júnior, o Cebola. Que me recordo como uma pessoa divertida e meio descabelada. Era amigo do meu pai desde os tempos de movimento estudantil na Baixada Santista. Desde 1996, ele dá nome à estação rodoviária de Santos (SP).
Também descobri, nas pesquisas para compreender o período da ditadura, que o casal de amigos dos meus pais, Fred e Leo, com quem "formamos amizade de família", também passaram pelo DOI-Codi.
O jornalista pernambucano Frederico Pessoa da Silva reencontrou meu pai na prisão, mas já se conheciam de um curso na extinta União Soviética em 1968. Morreu de câncer aos 67 anos, em 2016, segundo obituário da Folha de S.Paulo. O texto relembra que Fred nunca superou ter visto, durante as torturas, o estupro da esposa, Eleonora Machado Freire.
Foi nessa família improvisada que cresci. Formada por idealistas, políticos, jornalistas, homens e mulheres, provas vivas de como os clichês são poderosos: em tempos duros, seguiram o caminho da ternura.
Meu pai, Bernardino e Bonfante Demaria estiveram no presídio do Hipódromo juntos. Nas visitas, minha mãe fazia questão de me levar. Não sei se existe uma explicação psicanalítica para isso, mas minhas lembranças mais antigas são de lá.
Frequentei o Hipódromo entre meus segundo e terceiro anos de vida. As recordações são, acredite, muito felizes. Era o dia de ver meu pai. E ele sempre me recebia com um sorriso enorme. Era dia de dormir em um banquinho de madeira no seu colo e brincar no pátio de piso vermelho.
Também me recordo de ver minha mãe ser revistada por agentes femininas e que, enquanto isso, eu deveria "ficar bem quietinha".
Na prisão, meu pai aprendeu pirografia em couro e fazia artesanato para presentear amigos e familiares. Quando completei 3 anos, ele me deu de presente um poema. Talvez uma tentativa de, enxergando a potência da vida na filha tão nova, renovar a própria esperança, exaurida e quase aniquilada por um aparato institucionalizado de terror e violência.
Um dos trechos do poema diz: "Provocaste dor, mas foste a dor que santifica, a dor viva que cria, que traz a alegria do povo, a minha Ludmila". Ainda tenho a peça em couro, em uma moldura retangular e, como a história que me uniu ainda mais à do meu pai, marcada a fogo.
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