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"Não tem de haver diálogo com os militares, tem de haver comando", diz pesquisador

Passados dois anos da invasão nas sedes dos Três Poderes em Brasília, ápice da escalada golpista após a vitória da chapa Lula-Alckmin nas eleições de 2022, ainda é necessário impor um maior controle civil sobre as Forças Armadas – gesto que o atual governo ainda não demonstrou ao país.


Passados dois anos da invasão nas sedes dos Três Poderes em Brasília, ápice da escalada golpista após a vitória da chapa Lula-Alckmin nas eleições de 2022, ainda é necessário impor um maior controle civil sobre as Forças Armadas – gesto que o atual governo ainda não demonstrou ao país. Essa é a avaliação do historiador, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e ex-deputado federal Manuel Domingos Neto, pesquisador do meio militar há mais de 50 anos.

"A principal lição [do 8 de janeiro] é que o poder político tem de comandar, e, para isso, é preciso estudar e conhecer o militar. É preciso, de fato, comandar as Forças Armadas porque, sem condução civil, aberrações como as que produziram o 8 de janeiro persistirão", afirmou Domingos Neto em entrevista à Agência Pública.

Doutor em história pela Universidade de Paris, o professor discorda de outros estudiosos da área ao não acreditar, nem esperar, em uma abertura voluntária das Forças Armadas à sociedade civil. Ele enxerga como "manobra política" a recente proposta de dissolver o Comando de Operações Especiais (Copesp) – unidade dos kids pretos, onde serviram o general Mário Fernandes e outros suspeitos de articular a tentativa de golpe de Estado, segundo a Polícia Federal (PF).

"Não se deve acabar com as Forças Especiais, mas sim repensar seu tamanho, emprego e precisão. O Brasil tem hoje mais oficiais do que o necessário nessas organizações militares, lhes faltando comando e direção", avaliou o historiador. Para ele, não é possível eliminar o golpismo presente em setores das Forças Armadas sem repensar a doutrina e educação militares.

"O 8 de janeiro mostrou a dimensão da 'família militar', que não se constitui apenas dos núcleos próximos de oficiais e soldados, mas de pessoas que consomem canais de ex-militares e ex-alunos de colégios militares, entre outros. Não vejo avanços nessa contenção, nem em educar devidamente essas pessoas", afirmou. 

Confira, a seguir, os principais trechos da conversa com o historiador:

Dois anos após o fatídico 8 de janeiro, o senhor acredita que a democracia segue em risco? Qual o papel dos militares no cenário atual?

A democracia persiste ameaçada não apenas no Brasil, pois a onda obscurantista é mundial e, particularmente no Ocidente, ela está muito viva. Vivemos sob ameaça constante e, no caso brasileiro, a militância da extrema direita é extremamente ativa. Mas, no que diz respeito às Forças Armadas, creio que estão relativamente contidas. Acho que há um compromisso do atual comando em enfrentar o ativismo militar, no caso do Exército, vemos o comandante e a chefia do Estado-Maior conseguindo segurar a 'cadeia de comando', mas esse enfrentamento é limitado porque a militância extremista tem se exercido através das redes sociais, algo muito difícil de controlar.

Ainda não se sabe qual a extensão do golpismo dentro dos quartéis. A PF indiciou diversos oficiais da ativa por envolvimento na trama golpista, alguns deles em postos próximos do topo da carreira e em organizações estratégicas, como o Centro de Inteligência do Exército. O que podemos esperar para os próximos anos?

Essa questão nos leva à formação dos oficiais, especialmente no Exército, que joga os militares em uma missão confusa, de defesa diante de atores estrangeiros, mas também atuando com uma lógica de 'inimigo interno'. Por um lado, não se pode esperar que a sociedade civil se meta muito na vida interna da corporação, porque senão ela deixa de ser o que é – afinal, não é possível conceber uma guerra com exércitos agindo 'democraticamente'. Mas, por outro lado, é dever do poder político repensar não apenas a formação dos militares, mas principalmente a política de defesa nacional: qual a missão das Forças Armadas e sua disposição pelo território, se deve haver uma diminuição das organizações para que se possa investir em tecnologia, e por aí vai. Só assim mudaremos a mentalidade que muitos deles têm, de sentirem-se mais capacitados que os civis para ditar os rumos do país.

Mas o senhor vê abertura e vontade política para isso? O governo Lula, por meio do ministro da Defesa, dá sinais que poderia ou mesmo pretende conduzir esse debate?

Veja, o [José] Múcio é ministro 'entre aspas': ele não orienta nada, é apenas um porta-voz dos militares. Enquanto as corporações estiverem com essa autonomia ilimitada, não se pode prever outra coisa senão essa permanente confusão. O que cabe ao poder político é assumir o comando, porque a relação com o militar só pode se dar a partir da hierarquia e da disciplina. A mensagem que se passa quando se designa um mero porta-voz como ministro é de fraqueza, mas isso é algo possível de se recuperar. Basta o presidente da República assumir o comando de fato.

Chama atenção a presença de diversos oficiais com passagem pelas Forças Especiais na trama do golpe, conforme as investigações da PF. Há quem defenda a dissolução do Comando de Operações Especiais. O que fazer com essas tropas e batalhões?

Não há a menor possibilidade de um exército moderno não possuir um contingente preciso, altamente treinado para missões extraordinárias. É inviável essa ideia, parece coisa de quem não estudou os militares, de quem não conhece o meio nem seu motivo de existir. Não se deve acabar com as Forças Especiais, mas sim repensar seu tamanho, emprego e precisão. O Brasil tem hoje mais oficiais do que o necessário nessas organizações, lhes faltando comando e direção. Acredito que deve haver, no máximo, duas ou três companhias de Forças Especiais, para atender a situações de emergência, e o atual comando parece atento ao caso, como se viu na decisão do Estado-Maior do Exército de formar um grupo de trabalho para propor uma nova diretriz para o Comando de Operações Especiais [a criação do grupo foi formalizada em 13 de dezembro de 2024 e publicada na edição 51/2024 do Boletim do Exército].

Com tudo isso em mente, para o senhor, qual a lição que fica nestes dois anos do 8 de janeiro, pensando na ótica dos militares, da suspeita de envolvimento de oficiais de alta patente na trama golpista?

A principal lição do 8 de janeiro é que o poder político tem de comandar, e, para isso, é preciso estudar e conhecer o militar. É preciso de fato comandar as Forças Armadas porque, sem condução civil, aberrações como as que produziram o 8 de janeiro persistirão. Não é possível comandar sem conhecer o meio, que possui suas regras tácitas, seus segredos e sua própria ética – e o militar continuará observando a sociedade com uma visão própria, inerente à sua função.

Por outro lado, a investigação da Polícia Federal sobre o caso é limitada porque, entre outros motivos, ela pode responsabilizar alguns oficiais por envolvimento, mas sabemos que isso só ocorreu graças a um conjunto corporativo das próprias Forças Armadas, que operam sem o devido controle civil até agora. Há quem tente separar os oficiais da corporação, mas eu discordo dessa visão. Somente com controle que se poderá direcionar melhor a atividade militar, restringir seu campo de planejamento e atuação.

Além disso, o 8 de janeiro mostrou a dimensão da 'família militar', que não se constitui apenas dos núcleos próximos de oficiais e soldados, mas de pessoas que consomem canais de ex-militares e ex-alunos de colégios militares, entre outros. Não vejo avanços nessa contenção, nem em educar devidamente essas pessoas. Temos visto uma ampliação dos colégios militares nos estados, o que apenas renova a preocupação quanto ao golpismo nos próximos anos. Sem controle civil e político, me parece uma questão de tempo até que episódios similares se repitam – talvez, com um final diferente, o que agrava ainda mais o caso. 

SIte Oficial da AP

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