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Parentes de acusados pela morte de Rubens Paiva acumulam milhões de seguidores nas redes

A Agência Pública analisou parentescos dos militares denunciados pela morte de Rubens Paiva e encontrou três parentes que fazem sucesso nas redes sociais e acumulam milhões de seguidores.

Por Em Sergipe

11/01/2025 às 04:18:36 - Atualizado há

A Agência Pública analisou parentescos dos militares denunciados pela morte de Rubens Paiva e encontrou três parentes que fazem sucesso nas redes sociais e acumulam milhões de seguidores. Nenhum deles trata de política ou faz menção aos antepassados em suas contas – a não ser quando provocados por seguidores –, e a associação a essas pessoas chega a ser motivo de vergonha.

A mais famosa é Alexandra Burnier, mais conhecida como Lelê Burnier, que tem mais de 4 milhões de seguidores no Instagram e Tiktok. Ela ganhou fama postando vídeos de "get ready with me", ou "arrume-se comigo", em que mostra como escolhe roupas e acessórios para ir a eventos – as peças geralmente são de grife.

Com o sucesso do filme "Ainda Estou Aqui", internautas repararam que ela tem o mesmo sobrenome do Brigadeiro João Paulo Burnier, um dos envolvidos na morte de Paiva. Burnier comandava o quartel da 3ª Zona Aérea da Aeronáutica, para onde ele foi levado em 20 de janeiro de 1971 e sofreu as primeiras torturas. Além de Paiva, Burnier também é relacionado a outros episódios de assassinato, como o de Stuart Angel, e a pelo menos duas tentativas de golpe.

Burnier é considerado um dos militares mais linha-dura do regime. Ele foi descrito pelo Brigadeiro Eduardo Gomes, em uma carta endereçada ao ex-presidente Ernesto Geisel, como "um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista".

O militar era o chefe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), que integrava o sistema de repressão do regime. Uma das cenas do filme mostra agentes da CISA invadindo a casa da família Paiva no Dia de São Sebastião, feriado no Rio de Janeiro. O ex-deputado foi levado num carro enquanto outros agentes permaneceram na casa até o dia seguinte, quando Eunice Paiva e a filha Eliana, então com 15 anos, também foram presas.

Paiva permaneceu algumas horas no quartel comandado por Burnier, sendo interrogado e torturado. Depois foi enviado a uma unidade do Exército, onde sofreu as últimas violências que levaram à sua morte. 

Uma mulher que esteve presa no local ouviu que Paiva, enquanto agonizava, repetia várias vezes o seu próprio nome, soletrando o sobrenome do meio, Beyrodt, de acordo com o relato de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado, no livro que deu origem ao filme. Um médico que o atendeu e constatou ruptura do fígado também contou que Paiva disse apenas duas palavras antes de morrer: Rubens Paiva. Apesar do esforço para ser identificado, o corpo de Paiva nunca foi localizado.

Apenas em 2014, a Comissão da Verdade do governo federal, que analisou crimes da ditadura, traçou uma linha do tempo sobre o que aconteceu com o ex-deputado federal e apontou os autores de seu assassinato e desaparecimento.

Burnier também foi um dos líderes da revolta de Aragarças, contra o então presidente Juscelino Kubitschek. Em dezembro de 1959, homens da Aeronáutica sequestraram quatro aviões (sendo um comercial, da Panair, que levava passageiros do Rio a Manaus) e pretendiam bombardear os palácios das Laranjeiras e do Catete, no Rio. A revolta não recebeu apoio e foi sufocada em 36 horas. Este foi, aliás, o primeiro caso de sequestro de avião do Brasil. Burnier se exilou na Bolívia até 1961. Quando voltou ao país, não recebeu nenhuma punição.

Burnier também foi apontado como autor do plano que pretendia estourar bombas em diversos lugares do Rio de Janeiro, inclusive no Gasômetro de São Cristóvão na hora do rush e na Represa de Ribeirão das Lajes – o que poderia causar dezenas de milhares de mortos e destruir parte do abastecimento de água da cidade. Os ataques serviriam para encobrir sequestros e assassinatos de 40 autoridades, como Kubitschek e Carlos Lacerda. Tudo isso seria atribuído a movimentos de esquerda como justificativa para endurecer o regime. 

O plano não foi para frente porque foi denunciado pelo capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que se recusou a cumprir as ordens, ecuja versão foi corroborada por outras 37 testemunhas. Nada aconteceu a Burnier, mas sim a Carvalho, que foi processado e depois do AI-5, reformado.

Burnier ainda é lembrado por outra morte emblemática: a de Stuart Angel Jones, que foi morto dentro da Base Aérea do Galeão, que estava sob seu comando, poucos meses depois de Paiva. Stuart Angel foi amarrado com a boca no escapamento de um jipe e arrastado pelo pátio da unidade militar. Sua mãe, Zuzu Angel, passou os próximos anos denunciando a morte do filho – cujo corpo também nunca foi encontrado. Ela morreu em um acidente de trânsito em 1976, meses depois de denunciar que estava recebendo ameaças de morte. Há relatos de que seu carro foi fechado por outro e forçado a sair da pista.

Lelê Burnier nunca havia falado sobre o parente militar até ser questionada por centenas de seguidores quando o filme de Walter Salles estourou nos cinemas, nos últimos meses de 2024. Usuários pesquisaram o parentesco, que foi confirmado pela Agência Pública – e foram tirar satisfação nos perfis da influenciadora, pedindo para ela "fazer um get ready with me para ir assistir 'Ainda estou aqui'".

Após alguns dias, Lelê falou sobre o parentesco em um comentário. “Não tenho contato com meu pai nem com a minha família por parte de pai. Meus pais são separados desde que eu tinha um ano de idade, e minha mãe, meus avós e meu padrasto me criaram. As únicas coisas que meu pai já pagou para mim foram meu colégio e minha faculdade, nem presente de aniversário eu ganhava. Essa é a única e última vez que eu falo sobre isso”, ela disse. A Pública também a procurou, que não respondeu até a publicação desta reportagem. 

Denunciados pela morte de Paiva recebem aposentadorias altas do Exército 

Outra influenciadora que foi questionada por ter o mesmo sobrenome de um denunciado pela morte de Rubens Paiva é Raquel Belham, que tem cerca de 500 mil seguidores e faz vídeos sobre a própria vida. O parentesco dela é distante: o general José Antônio Nogueira Belham era primo da sua avó. Ainda assim, recebeu uma série de ataques. 

Ela gravou um vídeo em resposta. “A gente divide o mesmo sobrenome, apenas isso. Ele é uma ramificação da minha árvore genealógica, ele não faz parte dos meus ascendentes, não faz parte do meu núcleo familiar. Nunca tive contato, nunca encontrei”, disse.

“Eu sempre soube, vocês me contaram como se fosse uma novidade. Vieram me contar: ‘Olha, você não sabe quem é da sua família’. Gente, eu sei. Eu só não tenho contato, nunca encontrei. Não tenho o que fazer em relação a isso”, continuou. “Eu não tenho responsabilidade sobre os atos dos meus irmãos, eu vou ter sobre o primo da minha avó?.”

À Pública, Raquel agradeceu o contato, mas disse que não tem o que comentar.

O general Belham é um dos poucos denunciados pela morte de Paiva que ainda estão vivos – três dos cinco já faleceram. Ele recebe R$ 35,9 milpor mês e tem a patente de marechal, uma honraria dada a oficiais do Exército que tiveram atuação considerada excepcional. Na época do crime, ele era comandante do Destacamento de Operações e Informações (DOI) do 1º Exército, onde Paiva teria morrido.

Em 2003, a esposa de Belham foi assessora parlamentar do ex-presidente Jair Bolsonaro enquanto era deputado federal. Bolsonaro tem um longo histórico com a família Paiva: ele passou a infância em Eldorado, cidade onde os Paiva tinham fazendas. Jaime Paiva, avô de Rubens, era dono de muitas terras e foi prefeito duas vezes. Segundo a BBC, Bolsonaro costumava roubar mexerica dos pomares de Jaime, que se incomodava e colocou um vigia e um cachorro de guarda para guardar as árvores.

Mais tarde, já na política, Bolsonaro declarou que Rubens Paiva não morreu em sessão de tortura e chegou a cuspir no busto inaugurado em sua homenagem na Câmara Federal. "Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!", ele disse na ocasião.

Os irmãos Jacy e Jurandyr Ochsendorf e Souza, que atuavam no DOI-CODI e também foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) pela morte de Paiva, também têm descendentes influentes nas redes. Jacy ainda está vivo e recebe R$ 23,4 mil como major reformado.

O advogado criminalista Alex Sandro Ochsendorf, especialista em crimes militares, é de um ramo da família derivado do avô dos denunciados. Ele tem mais de 100 mil seguidores no Instagram e comenta casos jurídicos da Baixada Santista. 

"Nunca tive contato com os irmãos Jacy e Jurandyr, em verdade consegui contato com filhos e netos deles, mas apenas pelas mídias sociais", afirma. "Jacy e Jurandyr são cariocas. Na parte paulista da família não se comenta muito, alguns sequer sabem desse episódio."

Como advogado, porém, ele tem uma opinião sobre o caso Rubens Paiva. E é a de que seus parentes e os outros denunciados ainda poderiam ser responsabilizados. "A anistia de 1979 abrange os crimes cometidos entre 1961 e 1979, logo, tiveram a interpretação de que essa lei beneficiaria torturadores do regime militar. Particularmente eu discordo, porque a lei não fala expressamente os crimes de homicídio e tortura. Pela Constituição, tortura é um crime imprescritível".

"Além disso, o Estado declarou que Rubens Paiva foi morto e o crime de ocultação de cadáver é permanente, ou seja, os responsáveis pelo desaparecimento do corpo de Rubens Paiva ainda hoje podem ser responsabilizados", continua.

Processo sobre o caso foi retomado no STF 

O processo da denúncia contra cinco militares pela morte de Rubens Paiva foi oferecido em 2014 e estava sem movimentação desde 2018, mas foi retomado em novembro do ano passado, mesmo mês em que o filme estreou nos cinemas. A ação corre no Supremo Tribunal Federal (STF). A defesa dos acusados afirma que os crimes seriam abarcados pela Lei da Anistia e o MPF argumenta que, por serem crimes contra a imunidade, não poderiam ser anistiados.

"O Estado e a sociedade devem debater sobre as responsabilidades políticas e históricas dos torturadores e das instituições oficialmente envolvidas nas práticas criminosas", afirma Ricardo Oliveira, professor de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. 

Especialista em genealogia, ele também defende que é importante entender como o passado se reflete no presente. “As vidas cotidianas das famílias, os espaços sociais, residências, parques, piscinas, boas comidas, bons empregos, boas carreiras, bons soldos, boas pensões militares para filhas, boas vidas em um lado, e do outro lado a violência, tortura, destruição e morte de pessoas, violências contra trabalhadores e opositores. De que maneira os privilégios obtidos pela tortura e crimes contra os direitos humanos podem ser usufruídos sem críticas e sem exposição?", pergunta.

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