"A única coisa que eu fiz na frente da operadora foi chorar.
"A única coisa que eu fiz na frente da operadora foi chorar. Eu caí em choro profundo. Um choro convulsionante, na frente da atendente da Receita Federal, porque ela disse que não podia mudar [meu gênero no registro]", relata Iasmin Rodrigues. No dia em que tentou alinhar os dados do CPF com os do registro civil, Iasmin já possuía os documentos devidamente assinados e ratificados pelo cartório, comprovando o novo nome e gênero não-binário. Ainda assim, teve o pedido negado. O transtorno vai além de protocolos e burocracias e, acumulado em diversas frentes, se torna obstáculo à saúde mental de pessoas que já enfrentaram períodos de conflito, por vezes até com o próprio corpo.
A retificação de nome e gênero em cartório altera o registro civil, mas não é automaticamente replicada em outros sistemas. Embora não seja obrigatório ir à Receita Federal para concluir a retificação, a atualização serve para garantir a consistência dos dados e evitar problemas fiscais, bancários ou administrativos. Apesar de básico, esse caminho, cheio de etapas e assegurado por lei, é descrito por alguns como uma busca de "permissão para existir" perante o Estado.
A psicóloga e conselheira secretária do Conselho Regional de Psicologia da 21ª Região (CRP-21) Rafa Moon explica que o significado psicológico para uma pessoa trans ser reconhecida oficialmente e ter documentos condizentes com essa condição é carregado de múltiplos sentidos. "A gente tá falando de algo que é muito mais complexo, que é ser reconhecido. E essa imaterialidade talvez não chegue sequer à verbalização. Talvez não tenha como a gente verbalizar o que é você olhar um documento e você finalmente dizer: 'É isso'", explica.
A psicóloga ressalta que, diferentemente de pessoas cisgênero (quem se identifica com seu gênero de nascimento), cuja identidade é automaticamente validada pela sociedade e pelo Estado, para pessoas trans o reconhecimento estatal é vital para garantir acesso a direitos básicos. "Não tem como você ter saúde mental se você não tem acesso a todas as coisas que todos os outros cidadãos têm. Então, quando a gente tem um documento que diz e afirma que a gente é reconhecida pelo Estado, é uma forma da gente existir", complementa Moon.
Em 2023, o Brasil registrou 3.908 retificações de gênero em cartórios, maior número de solicitações desde 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a troca poderia ser feita sem exigência de autorização judicial ou cirurgia de redesignação. Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
Gahbi, 37, foi a primeira pessoa no Distrito Federal a conseguir, por meio de uma ação judicial individual iniciada em 2022, a designação do seu gênero não-binário em seus documentos e conta que percebeu o processo como um caminho repleto de "preconceito camuflado de burocracia".
"'Ah, não, essa história de mexer com isso de gênero, isso vai dar um problema pra você depois, vai dar problema com a Receita, vai dar problema com não sei o quê'", disse um advogado, segundo Gahbi, artista de TV. O suporte jurídico só veio na quarta tentativa, com uma advogada especializada em direitos LGBTQIAP+.
Ainda na primeira instância, o juiz exigiu perícia médica para identificar patologias antes de prosseguir. "De novo, eu preciso que me validem. Isso é muito agressivo. [â¦] Quando a gente se fala não-binário, [â¦] em algum lugar eu ouvi do outro assim: 'Ah, isso não existe. Ah, isso não existe. Ah, isso não exisâ¦". Como que a pessoa tá falando na sua cara que você não existe?",questiona Gahbi.
À época, no elenco da novela Elas por Elas, da TV Globo, Gahbi teve que enfrentar ameaças transfóbicas após a reivindicação se tornar pública. "Foi um linchamento virtual bizarro que eu sofri, que eu nunca tinha passado na vida [â¦] As pessoas entrando no meu perfil, no da minha mãe, fazendo ameaças de morte. Eu comecei a ter pânico de sair na rua", lembra. "Eu ia gravar e voltava pra casa. Ficava com medo, porque a gente não sabe quando é que essa ameaça vai se concretizar."
Após ter conseguido a retificação dos documentos em cartório, Gahbi buscou o alinhamento do CPF na Receita Federal, o que supostamente seria possível fazer remotamente. Na primeira solicitação, um erro no nome, registrado pelo próprio órgão, a obrigou a marcar um atendimento presencial.
“Ela [funcionária da Receita] nem sabia, mas ela, muito gentil, [disse]: 'Olha, se é isso, você tem seu direito. Mas eu não sei como fazer, eu tenho que falar com a chefia'." O chefe do setor, no entanto, sem saber que estava sendo ouvido, segundo Gahbi, reclamou: "Isso é um absurdo! A pessoa vem inventar uma coisa dessa?! Esse tipo de gente nem existe no sistema! Nosso sistema nem dá conta disso. Gente que não tem o que fazer e vem aqui inventando moda. Fala que não tem jeito".
"'Aqui é masculino e feminino. Se não for masculino e feminino, a gente vai te colocar como 'Outro'. Você vai ficar como 'Outro'? Eu, se fosse você, recuava. Melhor você recuar e deixar masculino mesmo'", reproduz Gahbi, sobre a "solução" ofertada na ocasião. "Daí eu falei: 'Não vou recuar. Se a única categoria que me cabe dentro da Receita Federal é 'Outro'", me coloca como 'Outro'", conta.
Após a Receita Federal, foi a vez de procurar a Polícia Civil em busca de uma Carteira de Identidade Nacional (CIN). Dessa vez, o campo sexo só tinha como opção divergente de masculino e feminino a opção "X". "Se é o que tem, bora", completou.
Gahbi diz que a conquista não é legal, mas existencial. "As pessoas pensam que é só um papel, né? [â¦] Eu acho que é uma abertura de caminhos de cidadania de busca de direitos, de políticas públicas, de existir publicamente, socialmente, politicamente, culturalmente. [â¦] Eu acho que esse impedimento de ser quem se é, arrisco dizer, talvez seja a maior violência, a maior dor e sofrimento de uma pessoa no mundo."
Meses após a conquista de Gahbi, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) decidiu, em agosto de 2023, que pessoas não-binárias teriam acesso a fazer alteração de gênero e de nome diretamente nos cartórios extrajudiciais. A decisão foi do corregedor da Justiça do Distrito Federal, desembargador J. J. Costa Carvalho, após estudo da Coordenadoria de Correição e Inspeção Extrajudicial (Cociex) em parceria com a Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg/DF).
Procurado, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), que regula a emissão da Carteira de Identidade Nacional e ocupa a Secretaria Executiva da Câmara-Executiva Federal de Identificação do Cidadão (Cefic), informou que a CIN segue ofertando apenas três opções no campo sexo: masculino, feminino ou indeterminado/não especificado (representado com a letra X). A opção não-binário ainda não é disponibilizada para a população. Segundo o órgão, o formato atende à Resolução nº 20, de 9 de setembro de 2024.
"Eu acho que, subjetivamente, [é] ter um nome pra minha existência. O Estado reconhece que eu tô aqui, querendo ou não, fazendo parte ou não do sistema, eu tô aqui. Isso me trouxe autoestima, sabe?", finalizou Gahbi.
A professora Iasmin Rodrigues, 35, mudou-se de Pernambuco para Brasília em 2014. Quatro anos depois, após processos de autoanálise e início de um doutorado na Universidade de Brasília (UnB), ela começou a questionar o seu gênero de nascimento e, no fim de 2023, deu início a um processo de retificação.
"O meu processo de transição não veio exatamente por uma grande dor. Ele não veio por uma enorme angústia. [â¦] O meu processo de transição vem quase como se pelo excesso. [â¦] O meu processo trans tá no excesso de vida", relata a professora, que se identifica como transfeminina não-binária, o que significa que, embora não se veja restrita ao binarismo feminino ou masculino, reconhece em si aspectos femininos que compõem sua identidade.
Nascida em Santa Cruz do Capibaribe (PE), Iasmin não encontrou facilidade no processo de ajuste de seus documentos, mesmo morando em Brasília há quase dez anos, porque o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) não possuía o mesmo entendimento sobre a retificação de gênero que o TJDFT. Por isso, foi necessário ingressar com um pedido judicial.
O processo durou quase cinco meses, após a Defensoria Pública do DF ter solicitado que Iasmin fosse judicialmente entendida como pessoa não-binária. A decisão do TJDFT foi enviada ao TJPE e somente então o cartório em que ela foi originalmente registrada foi notificado e autorizado a realizar a alteração.
Ao tentar obter a CIN, Iasmin também enfrentou problemas na Receita. "Apresentei tudo, com a certidão, com a decisão judicial que dizia 'o nome desta criatura é este [Iasmin] e o gênero desta criatura é não-binário. Quando eu entrego lá na Receita Federal, a senhora olha pra mim e diz: 'Ok, o nome a gente muda, o gênero não dá pra mudar", lembra.
Com medo de que o documento apresentasse o sexo anterior ao seu processo de transição, Iasmin chegou a pedir a alteração para o sexo feminino. "Aí é onde o burocratismo vence tudo. [De fato] Não tinha nenhum documento meu dizendo que eu era [do sexo] feminino. Só tem documento meu dizendo que sou não-binário", explica a professora. "E eu chorava, e chorava, e chorava. Ela dizendo assim: 'Mais alguma coisa? Mais alguma solicitação? Posso fazer mais alguma coisa?'", relata.
De acordo com a decisão da juíza federal Anne Karina Stipp Amador Costa, da 5ª Vara Federal de Curitiba, em janeiro de 2024, a União foi condenada a, no prazo de 180 dias, promover a adequação de seus formulários relacionados à retificação de CPFs de pessoas LGBTQIA+. A medida visava reconhecer a multiplicidade de arranjos familiares e de identidades de gênero, bem como a condição de intersexualidade.
Iasmin foi à Receita Federal em 10 de maio de 2024, um mês antes do fim do prazo. Iasmin diz que até hoje não soube como ficaram seus dados no órgão.
Em resposta à Pública, a Receita informou que o sistema não utiliza o termo "não-binário". O cidadão pode optar pela categoria "não especificado". "A CIN passou a ser emitida desde 26 de julho de 2022 pelos órgãos de identificação civil dos Estados e do Distrito Federal. O gênero a ser informado na CIN e no CPF deve considerar as 3 (três) possibilidades existentes: "Masculino (M)", "Feminino (F)" e "Não Especificado (X)", informou a Receita, que diz seguir os padrões estabelecidos no artigo 2º da Resolução nº 9, de 7 de novembro de 2022 da Cefic. O órgão ressalta ainda que não há previsão de inclusão da categoria "não-binário".
Os trâmites para retificação dos documentos civis foram parecidos aos dos seu diploma de graduação. O longo caminho, descreve ela, era como se cada etapa fosse um pedido por existência.
"É um pedido de permissão para ser trans. Eu tive que pedir permissão para existir, tive que pedir permissão para existir de novo, e eu ainda tô pedindo permissão para existir", relata. A professora ainda hoje aguarda, desde outubro de 2024, o diploma de graduação retificado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (Fafica).
À Pública, a unidade de ensino não deu explicações sobre o que impediu a regularização do diploma da aluna, mas informou que a empresa enfrentou um período de atrasos na emissão de documentos, em especial após o encerramento das atividades da instituição, em 2021. Dias após o contato da reportagem, a faculdade emitiu o novo diploma de Iasmin e a entrega foi feita no dia 27 de janeiro.
Iasmin Rodrigues enfatiza que durante o processo, além das burocracias enfrentadas, muitas pessoas tentam desmotivar ou fazer a pessoa mudar de ideia. O argumento apontado é a violência que ela sofreria. Comemorando pequenos passos, vitórias, de documento em documento, ela ensina: "Entenda que isso é muito um olhar de fora, porque quando, quando é a gente, é um olhar de outra maneira: 'Nossa, como eu vou sofrer se eu não fizer! Como eu vou sofrer se eu não transicionar'".
No dia 7 de janeiro de 2025, Mark Zuckerberg anunciou em um vídeo que a Meta alteraria suas políticas de moderação de conteúdos. Pouco depois, no mês de conscientização pela saúde mental e do Dia da Visibilidade Trans, a empresa começou a permitir que pessoas transgênero fossem associadas à "anormalidade" ou "doenças mentais” em suas redes sociais, como Facebook, Instagram e WhatsApp.
"Nós permitimos alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, dado o discurso político e religioso sobre transgenerismo e homossexualidade", afirmam as novas regras de moderação da big tech.
Para Moon, essa medida é, além de uma tentativa de disfarçar mudanças estratégicas da empresa, um ataque direto. "Na verdade, isso são tentativas [â¦] de suicidamento, aniquilamento das identidades. Então, quando esses ataques vêm, eles não vêm sem motivo. É uma forma de suicidar pessoas", argumenta a psicóloga. "Quando esses ataques vêm, eles literalmente prejudicam a saúde mental [â¦] O aparato jurídico e legal brasileiro não pode, de maneira alguma, permitir que isso aconteça. Claro que isso vai caber também em interpretação das pessoas que lá estiverem no Supremo Tribunal Federal", completa.
Após o anúncio da Meta, a Advocacia-Geral da União (AGU) notificou a empresa para esclarecer os impactos da medida no Brasil. Em resposta, a Meta afirmou que as mudanças relativas à Política de Conduta de Ódio já estão em vigor no país. A justificativa oficial da empresa é "garantir maior espaço para a liberdade de expressão [â¦] e permitir um debate mais amplo e conversa sobre temas que são parte de discussões em voga na sociedade".
O movimento de Zuckerberg foi se aproximar do presidente norte-americano Donald Trump, que já tem em sua equipe o bilionário Elon Musk, dono do X, antigo Twitter. O anúncio da Meta foi feito dias antes da posse do republicano, no último dia 20 de janeiro, que, em seu discurso inaugural, também fez ataques às pessoas trans e não-binárias, chegando a dizer que, em seu governo, reconheceria apenas dois gêneros, masculino e feminino.
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