O comandante-geral da Polícia Militar (PM) de Roraima, coronel Miramilton Goiano de Souza, recebeu R$ 124 mil da prefeitura de Bonfim, no interior do estado, sem licitação.
O comandante-geral da Polícia Militar (PM) de Roraima, coronel Miramilton Goiano de Souza, recebeu R$ 124 mil da prefeitura de Bonfim, no interior do estado, sem licitação. O total foi fechado em dois contratos: um em 2021, no valor de R$ 51 mil; e um segundo em 2022, no total de R$ 73 mil. Os contratos foram para o policial realizar treinamentos de tiro para guardas civis metropolitanos e compra de munição para os cursos.
Em 2021, o valor do contrato com o policial representou quase 60% do dinheiro gasto no ano pela Secretaria de Segurança Pública do município, segundo a prestação de contas de Bonfim.
De acordo com especialistas ouvidos pela Agência Pública, partes do acordo, como a compra de munições, deveriam ter ocorrido por meio de licitação. Os valores foram pagos na conta corrente do atual chefe da polícia.
Os contratos foram assinados na época em que Souza era subcomandante da corporação no Estado. Ele foi promovido a comandante-geral em janeiro de 2023. Quem assina os contratos é o prefeito de Bonfim, Joner Chagas, do Republicanos.
Bonfim é um município de 13 mil habitantes a 112 km da capital Boa Vista, na fronteira do Brasil com a Guiana. A área fronteiriça do país vizinho é a região de Essequibo, que tem sido reivindicada pelo presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o que gerou uma crise diplomática entre as duas nações. O efetivo de guardas civis da cidade, atualmente, é de 18 agentes, segundo informou a prefeitura.
Os contratos foram feitos por inexigibilidade de licitação, justificada quando o contratado tem "notório saber" para exercer uma função exigida pelo órgão público.
O primeiro contrato estabelecia o valor de R$ 51 mil, sendo R$ 18 mil pagos ao coronel para que ele ministrasse 160 horas de treinamentos a uma turma de guardas civis municipais que atuariam na fronteira. Os outros R$ 33 mil, que também foram pagos em depósito na conta corrente do militar, seriam destinados à compra de munições que seriam utilizadas no treinamento.
O contrato definiu que o coronel deveria apresentar outros dois instrutores capacitados para ministrar o treinamento. De acordo com o professor de direito público da Universidade de São Paulo (USP) Marcelo Nerling, a exigência de outras pessoas, além do contratado, fere o princípio da inexigibilidade de licitação.
"[Neste caso] você quebra uma das espinhas centrais da inexigibilidade, que é aquele que tem um 'notório saber', que gera a inexigibilidade de licitação. [O detentor do notório saber] deve prestar diretamente o serviço. Há uma subcontratação, ou seja, esses dois instrutores podem não ter a mesma condição, que é o notório saber que foi empregado para inexigir a licitação", explicou o professor.
Cinco meses após o primeiro acordo, em janeiro de 2022, o coronel fechou outro contrato sem licitação com a Prefeitura de Bonfim. Dessa vez, o curso de tiro era destinado a uma segunda turma de guardas civis que atuariam na fronteira.
No segundo contrato foram pagos R$ 22 mil para ministrar o curso. Diferentemente da primeira contratação, essa não especificou a quantidade de horas-aula. Novamente, foi combinado o pagamento na conta pessoal de Souza para a compra de munições – R$ 51 mil dessa vez.
Nerling explica que, nesse caso, a compra dos projéteis que seriam usados no treinamento deveria ter sido alvo de um processo de concorrência pelo fornecimento por meio de uma licitação. "Eu não vejo legalidade na inexigibilidade de licitação. [É] aceito isso para a compra de serviços. Mas a inexigibilidade de licitação para a compra de cartuchos, quer dizer, qual é a justificativa? Não existe justificativa nenhuma, porque não há notório saber, e não existe uma única marca de cartucho, mas, ainda que houvesse essa única marca, certamente tem várias empresas vendendo cartucho", disse.
O coronel Miramilton Goiano de Souza se posicionou por meio de uma nota e disse que é instrutor de tiro "credenciado pelo Departamento de Polícia Federal desde 2013, esclarece que os dois contratos referentes à capacitação da Guarda Civil Municipal de Bonfim foram feitos com base em convênio entre a Polícia Federal e o órgão municipal de formal legal e oficial".
"Em relação à compra de material para este treinamento, ele requer também prévia autorização da Polícia Federal, que emite um ofício autorizando o instrutor, que é credenciado pela Polícia Federal, a ir ao mercado local e comprar o material mediante apresentação de nota fiscal", disse Souza sobre os valores repassados para sua conta corrente para a compra de munições. [Leia a nota na íntegra]
Questionado, o Governo do Estado de Roraima, sob a gestão do governador Antonio Denarium (PP), respondeu que, "quanto ao fato de o coronel ministrar curso, sendo credenciado e autorizado por órgão competente e em horário fora do trabalho, não há infração a ser observada". O governo respondeu que não cabe se pronunciar sobre o contrato entre o coronel e a Prefeitura de Bonfim.
A Polícia Federal, por sua vez, disse que "há um Acordo de Cooperação Técnica entre a Polícia Federal e a Prefeitura de Bonfim para concessão de porte de arma de fogo aos guardas civis municipais, conforme previsto na lei 10.826/2003 e decreto 11.615/2023. O ACT se refere exclusivamente à habilitação ao porte de arma de fogo (DISCIPLINA ARMAMENTO E TIRO), não aos cursos de formação em geral de guardas civis municipais. A Polícia Federal não autoriza e nem regula a contratação de uma pessoa para ministrar curso de tiro, tal atribuição se encontra sob a tutela do Exército Brasileiro". [Leia a nota na íntegra]
A Pública questionou a Prefeitura de Bonfim sobre o motivo pelo qual a gestão de Joner Chagas escolheu o coronel para ministrar o curso e sobre as condições do contrato. Por meio da Secretaria Municipal de Segurança Pública, a resposta foi que "o curso de armamento e tiro foi realizado por um instrutor credenciado e autorizado pela Polícia Federal, conforme determina a legislação". "A Secretaria Municipal de Segurança Pública informa que todas as contratações que realiza ocorrem de forma transparente, em acordo com os princípios da administração pública", disse a Prefeitura em nota.
Chagas foi reeleito em Bonfim nas eleições de 2020 com 66% dos votos, derrotando os adversários Darlene Tiririca (PSB) e Nando Macedo (PDT). Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o prefeito declarou R$ 536 mil em patrimônio.
Em junho de 2022, o jornal Valor Econômico publicou que Chagas era alvo de investigação do Ministério Público Federal em Roraima (MPF-RR) por fraudes em licitações para favorecer empresas ligadas à sua família. Segundo a reportagem, Chagas usaria empresas de pessoas próximas para superfaturar valores de contratos, além de não entregar bens e serviços supostamente comprados. De acordo com o portal, a denúncia contra o prefeito foi protocolada em maio de 2022 e as investigações foram postas em sigilo em 8 de junho do mesmo ano pelo juiz federal Saulo Bahia, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A Pública procurou o MPF, mas o órgão respondeu que as investigações tramitam em sigilo e que "os procuradores não concedem entrevistas sobre casos sigilosos".
O secretário de Fiscalização de Licitações e Contratos do Tribunal de Contas do Estado de Roraima (TCE-RR), Aristóteles Sampaio, disse à Pública que o órgão não consegue fiscalizar os contratos de todos os municípios e conta com a participação da sociedade civil, além de órgãos de imprensa para apontar possíveis irregularidades em contratos públicos.
"O Tribunal de Contas trabalha com a materialidade e seletividade. O tribunal não é onipresente e onipotente, né? Ele não pode tudo e não está em todos os locais. Então, a gente tem que trabalhar com critérios de auditoria que selecionem alguns editais e contratos", disse o secretário ao ser questionado se o órgão analisa todas as contas públicas do Estado.
Sampaio explica que o site do TCE-RR conta com um canal de denúncias que é administrado por um "robô" responsável por filtrar as queixas de processos licitatórios e contratuais para que a equipe realize as análises e investigações.
O secretário disse desconhecer os processos de inexigibilidade efetivados entre o prefeito de Bonfim e o coronel da Polícia Militar de Roraima e que são "uma situação a ser verificada".
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