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Na tarde do último sábado (20), numa modesta pousada em Brasília, o cacique Xavante Agnelo, uma das antigas lideranças da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), recebeu uma singela homenagem de seus parentes ao ser chamado ao microfone na hora de cortar o bolo de aniversário da entidade. Principal organização indígena da Amazônia, a Coiab comemorou 35 anos.
"Em 35 anos de Coiab, ela nunca se vendeu", disse Agnelo aos seus parentes, reunidos para rodas de conversas e treinamentos que antecederam o início do Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília. Agnelo falou sobre a necessidade de manter a independência do movimento indígena em relação aos políticos e autoridades. Seu conselho reflete as preocupações atuais do movimento indígena.
Milhares de indígenas vieram a Brasília para a edição anual do maior evento indígena no país do ponto de vista político, o ATL, que ocorre de segunda-feira (22) a sexta-feira (26). Serão cerca de 8 mil indígenas de várias partes do país, segundo a organização. Só do Nordeste vieram 52 ônibus. Inundam a capital federal com línguas, cantos, cores e uma incrível diversidade étnica e cultural que deveria ser motivo de orgulho de todos os brasileiros.
Em outra data comemorativa, o ATL deste ano será o vigésimo já realizado. Durante manhãs e tardes inteiras ao longo desta semana, indígenas debatem seus desafios, denunciam violações de seus direitos e cobram resposta das autoridades. Tem sido assim desde o primeiro ATL, em 2004, fosse qual fosse o presidente de plantão, a saber: Lula (2004-2010), Dilma Rousseff (2011-2016), Michel Temer (2016-2018), Jair Bolsonaro (2019-2022) e, novamente, Lula (2023-).
O ATL deste ano tem um significado especial porque o governo Lula 3 patina principalmente na hora de homologar as demarcações de terras indígenas, uma tarefa que cabe, inclusive legalmente, ao próprio Lula. Ao mesmo tempo, é o primeiro governo em que importantes integrantes do movimento indígena aceitaram ocupar cargos de relevo. Os exemplos mais conhecidos são a ministra dos Povos Indígenas (Sonia Guajajara), a presidente da Funai (Joenia Wapichana) e o secretário especial de saúde indígena do Ministério da Saúde (Weibe Tapeba).
Sonia era a principal liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que reúne todas as maiores entidades indígenas do país. A Apib foi criada em 2005 exatamente como resultado do primeiro ATL, realizado no ano anterior, em 2004.
Diversas lideranças do movimento indígena apoiaram publicamente a eleição de Lula em 2022, até para evitar a repetição da desgraça dos terríveis quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, um pesadelo para os povos indígenas.
O movimento indígena ficou aliviado e feliz com o fim do triste governo Bolsonaro. Anunciou-se um novo tempo, marcado pelo convite de Lula para que o cacique Kayapó Raoni descesse a rampa ao seu lado na solenidade de posse na Presidência, em janeiro de 2023. O primeiro ATL realizado durante o governo Lula, em abril do ano passado, ainda refletiu um sentimento de tolerância num momento de reconstrução do Executivo.
Com o passar do tempo, contudo, a tolerância às dificuldades alegadas pelo governo foi diminuindo. Nos últimos meses, em especial nesses últimos dias que cercam a realização do ATL, as lideranças indígenas aumentaram o volume contra o governo. O alvo número um é a morosidade na demarcação das terras indígenas.
Em 16 meses desde o início do governo Lula 3, foram homologadas apenas dez terras, número que o movimento indígena considera extremamente pequeno e penoso para milhares de indígenas que aguardam há anos o reconhecimento do Estado brasileiro sobre o seu direito à terra.
Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças do Pará e do país, disse à Agência Pública na segunda-feira, durante a abertura do ATL, que o apoio político do movimento indígena à eleição de Lula e aos integrantes indígenas do governo nunca representou capitulação. Durante o ATL, disse Alessandra, "a gente vai bater no governo" porque "o nosso povo está sofrendo".
"A gente do movimento fica feliz que o movimento esteja no governo hoje. Só que não adianta estar no governo se o governo não está dando suporte [às pautas indígenas]. Hoje a gente vê muito caos nas CRs [coordenações regionais] da Funai, nos Dsei [distritos sanitários indígenas], o contrato que não tá saindo Ou seja, cadê o dinheiro que era pra ter pra base mesmo, pro povo mesmo que está precisando, que está doente, que estão lá em frente a toda dificuldade, o governo federal não tá dando suporte."
"Eu fico feliz que a Sonia está dando uma pressão, a Joenia também, dando uma pressão do [nosso] lado. Só que [o governo] não dá suporte. Isso vai acabar, o governo acaba, e o nosso território vai continuar lá. E isso é bem preocupante. Porque o Lula vai sair [da Presidência], um dia, e a gente vai ficar. Como vai ser a nossa vida daqui pra frente?"
Kretã Kaingangue, uma das maiores lideranças indígenas do Sul do país, filho de Ângelo Kretã, ícone da luta pela terra nos anos 970 e morto durante a ditadura militar, disse que "é preciso saber dividir bem certinho o que é movimento indígena e o que são os nossos parentes dentro do governo".
E "os parentes dentro do governo", disse Kretã, também têm que entender essa distinção.
"Cobrar, nós cobramos igual. A gente cobra qualquer governo, mesmo que não tivesse indígena. Não somos inimigos, porque eles também vieram do movimento indígena. [ ] Isso que o governo também tem que entender é que ele não pode pensar que os nossos parentes vão ser massa de manobra pra poder fazer com que o movimento indígena não faça as cobranças em cima do governo federal."
Segundo Kretã, a posição independente do movimento indígena é antiga. As primeiras organizações indígenas datam dos anos 1980, como a União das Nações Indígenas (UNI). "Eu acredito que nós sempre fomos independentes. E o movimento indígena sempre foi pelo diálogo. A gente só radicalizou mesmo quando a gente viu que não tinha como andar esse diálogo. Só por isso que radicalizou."
Para Kretã, o primeiro ATL realizado durante o governo Lula 3, no ano passado, ainda refletiu uma certa expectativa do movimento indígena. Agora o cenário mudou.
"Hoje nós estamos firmando uma postura [sobre] um mandato dele que já está há um ano e quatro meses [no cargo]. Então é essa postura que nós estamos tomando de diferente agora. No ano passado ainda estava muito recente o movimento [governo]. [ ] Mas deixa [passar] o primeiro ano, porque a gente sabia que a gente veio de um outro governo, de um desgoverno, a gente sabia que a gente entraria nesse governo com um orçamento pela metade, os ministérios todos esculhambados, Funai esculhambada, saúde esculhambada, e nós tínhamos que reconstruir isso."
Passado o primeiro ano, disse Kretã, "a cobrança tem que ser um pouco mais pesada mesmo pra poder garantir algum direito".
No lado do governo, pelo menos dois argumentos têm sido usados para explicar o comportamento moroso sobre as demarcações. O primeiro é o temor de Lula se indispor com parlamentares do centro, da direita e da extrema direita que ainda votam com o governo em determinadas matérias. E eles são muitos, reacionários, obscurantistas. Distorcem o tema das terras indígenas a fim de mobilizar seus eleitores nas redes sociais. Trata-se do pior Congresso eleito desde a redemocratização. Nesse caso, ao empurrar as demarcações com a barriga, o governo faz um cálculo político em torno desta palavrinha para muitos maldita, a governabilidade.
Em segundo lugar, o governo argumenta que o baixo número de demarcações é um reflexo da aprovação do projeto de lei em outubro passado (nº 14.701/2023), pelo Congresso Nacional, que adotou a fantasia jurídica do "marco temporal". Essa tese já foi devidamente desmontada e declarada inconstitucional após votação em plenário no Supremo Tribunal Federal (STF). Lula vetou os trechos do projeto que falavam do "marco temporal", mas o Senado derrubou os vetos.
O pior Congresso desde a redemocratização usou o marco temporal para afrontar o STF no contexto de uma reação contra o tribunal promovida pela extrema direita contra as investigações sobre o plano de golpe de Estado em 2022. Os indígenas, mais uma vez, pagam o pato.
Mas esses argumentos do governo seriam suficientes para explicar dez terras demarcadas ao longo de um ano e quatro meses? Para os líderes do movimento indígena, não. Caiu particularmente como uma bomba a declaração de Lula, na semana passada, de que estava conversando com governadores acerca de terras reivindicadas pelos indígenas. A partir dessas conversas, disse Lula, nas quais governadores teriam dito que precisam de mais tempo, ele deixou de homologar terras..
A resposta veio na primeira entrevista coletiva do ATL, na manhã desta segunda-feira (22).
"A gente vai continuar lutando, vamos continuar brigando pela demarcação das terras. Não é batendo papinho com governador, não é comprando terra que vai se garantir o direito constitucional dos povos indígenas aos seus territórios originais. O rito de demarcação não prevê conversinha com o governador. Pelo contrário, o Decreto 1.775, após a publicação dos estudos, prevê um prazo de contestação onde qualquer cidadão, qualquer pessoa, física ou jurídica, entidades públicas, privadas, governos ou não, entre e conteste a demarcação de terras no prazo de 90 dias. Esse é o momento. [Se] não é feito nesse momento, não existe nenhuma outra fase dentro do processo de bate-papo, de conversinha com governador ou com prefeitos", disse Kleber Karipuna, da Apib. Ele citou que o governo já poderia ter demarcado de imediato mais 23 terras sobre as quais não existem óbices nem mesmo sob o ponto de vista do "marco temporal".
SIte Oficial da AP