A Polícia Civil paulista começou a investigar o acesso pela prefeitura de São Paulo a dados sigilosos de pacientes que fizeram aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha entre os anos de 2020 e 2023.
A Polícia Civil paulista começou a investigar o acesso pela prefeitura de São Paulo a dados sigilosos de pacientes que fizeram aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha entre os anos de 2020 e 2023.
O inquérito policial para apurar violação de segredo profissional, por parte da prefeitura, foi aberto em fevereiro deste ano, de acordo com o Ministério Público de São Paulo (MP-SP). O processo corre em segredo de justiça.
A Secretaria de Saúde copiou os prontuários dos pacientes com a justificativa de que teriam ocorrido irregularidades no serviço de aborto legal do hospital. A Agência Pública já mostrou que, na verdade, não houve nenhuma denúncia sobre a unidade desde 2019.
Os dados dos prontuários são sigilosos e só poderiam ser acessados pelos próprios pacientes ou por ordem judicial – o que não ocorreu. As informações ainda teriam sido repassadas à Secretaria de Segurança Pública, o que suscita o temor de que profissionais de saúde e pacientes sejam alvos de investigações criminais.
O MP-SP foi acionado em janeiro deste ano pelo mandato da deputada federal Sâmia Bomfim, pela deputada estadual Mônica Seixas, do mandato coletivo Pretas, e pela vereadora Luana Alves, todas do PSOL de São Paulo.
A cópia dos prontuários ocorreu em dezembro, mesmo mês em que a prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) decidiu suspender o serviço de aborto legal no hospital, que era referência no país e concentrava o maior número de procedimentos da capital mais populosa da América Latina. Foram 419 atendimentos na última década. Os outros quatro hospitais que prestam o serviço, somados, atenderam 190 casos no mesmo período.
Funcionários do Vila Nova Cachoeirinha, ouvidos sob condição de anonimato pela Pública, relataram que começou um clima de terrorismo na unidade depois da cópia dos prontuários. “Quando os prontuários foram confiscados, quem podia tinha acesso a ele, e ficava-se debatendo sobre as histórias [os casos atendidos]. Foi tanto escrutínio que as histórias começaram a correr nos corredores do hospital”, disse uma pessoa com ligação à unidade.
Com a interrupção do atendimento no Vila Nova Cachoeirinha, pacientes em gestação avançada encontram dificuldades para interromper a gravidez, mesmo nos casos previstos na lei, na capital paulista.
A prefeitura alega que o Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni, Hospital Municipal Tide Setúbal, Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo) e Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio ainda fazem o atendimento. Mas a Pública apurou, com profissionais de saúde e entidades que atuam pelo direito das mulheres, que isso não está ocorrendo.
Em março, já contamos o caso de uma mulher que foi vítima de violência sexual e teve o direito negado. Ela precisou sair do seu estado para ser atendida em um hospital de Salvador, na Bahia. A lei brasileira permite a interrupção da gravidez em casos de violência sexual, anencefalia do feto ou risco de vida da gestante.
Nesta segunda-feira (29), o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) suspendeu duas médicas do Vila Nova Cachoeirinha por acusações de negligência e tortura. Nos dois casos, o aborto foi feito em pacientes com fetos com má-formação e sem expectativa de vida após o nascimento e que haviam recebido aval da Justiça para interromperem a gravidez. Uma terceira denúncia seria analisada na terça-feira (30), mas as médicas conseguiram um mandado de segurança.
Não se sabe como os casos chegaram ao Cremesp, mas a principal suspeita é que isso aconteceu por meio dos prontuários copiados no fim do ano passado. Em nota, o conselho disse que “respeita o direito da mulher ao aborto legal e ressalta que, como autarquia federal, tem a prerrogativa de fiscalizar o exercício ético da Medicina em qualquer instituição hospitalar no Estado de São Paulo. O Conselho está apurando os fatos que se encontram em sigilo nos termos da Lei”.
A prefeitura de São Paulo não respondeu até a publicação. A Polícia Civil também não comentou.
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