A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (19) o projeto de lei que cria um mercado de carbono regulado no Brasil, colocando um "preço" nas emissões dos gases que provocam o aquecimento global. O objetivo é ajudar o país a cumprir sua meta climática de redução de emissões.
O projeto de lei (PL), que agora segue para sanção presidencial, institui um sistema, supervisionado pelo governo, no qual empresas e indústrias terão cotas máximas de emissão – como se fossem licenças para emitir até determinado volume dos gases do efeito estufa. Aquelas que emitirem menos, poderão vender a diferença, enquanto as que emitirem mais terão que comprar essas sobras ou adquirir ativos representativos de remoção de gases.
O novo Sistema Brasileiro de Comercialização de Emissões (SBCE) deve contribuir para a diminuição das emissões poluentes do país ao incentivar a descarbonização da economia – ou seja, a substituição, por fontes limpas, de práticas industriais e processos de geração de energia que utilizam combustíveis fósseis.
Sua aprovação, na noite desta terça, ocorreu a tempo de pode ser destacada pelo governo brasileiro na 29ª Conferência do Clima da ONU, em Baku, que é realizada até o fim desta semana.
O objetivo do SBCE, como resumiu à reportagem Shigueo Watanabe Jr., pesquisador dos institutos Climainfo e Talanoa, é que os empresários troquem as caldeiras de suas fábricas. Isso vai acontecer, explica Watanabe, à medida que o governo aumentar as restrições no Plano Nacional de Alocação – ainda a ser elaborado e que definirá quanto cada setor terá de cotas de emissão por determinado período de tempo. A ideia é que, a cada ciclo de atualização do plano, menos cotas de poluição sejam distribuídas.
Segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública, apesar de representar um passo importante para investimentos em projetos de descarbonização e conservação, o PL deixou em aberto muitas definições importantes para o funcionamento do mercado de carbono, que serão resolvidas por meio de regulamentações infralegais (como decretos e portarias).
Setores que farão parte do sistema ainda não foram definidos
É o caso da governança do SBCE, que acabou não determinada pela lei. O texto também não especificou quais setores farão parte do sistema, como acontece em outros países. A proposta apenas estabelece que operadores responsáveis por instalações e fontes que emitam mais de 25 mil toneladas de CO2 equivalente por ano serão regulados.
Essas definições deverão ser alcançadas em um prazo de 12 meses, prorrogáveis por mais 12. Depois disso, o sistema ainda levará mais alguns anos para ser totalmente implementado, o que deve ocorrer em 2030.
"A lei deixa em aberto para a regulamentação inúmeras questões. Na prática, os órgãos de governança terão ampla margem para regulação e para ação. E, com isso, também acabam se sujeitando a críticas ou questionamentos", diz Daniel Barcelos Vargas, professor de direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e de economia na FGV em São Paulo.
Segundo Vargas, esta pode não ser a melhor estratégia para o Brasil quando comparada com os mercados regulados de outros países. A União Europeia criou, ainda em 2003, um mercado de carbono para o setor energético, que, em 2012, incorporou também a aviação regional – o mesmo deve acontecer em breve com o transporte marítimo.
Já a China também implementou, em 2021, um sistema restrito a cerca de 2.000 instalações termelétricas, movidas a carvão e gás.
Outros mercados regulados, como o da Califórnia e o da Austrália, também determinam setores específicos sujeitos à regulamentação.
O perfil de emissões do Brasil, no entanto, é bem diferente desses países. Enquanto nesses lugares o maior problema está no setor energético, o Brasil tem uma matriz elétrica mais limpa, baseada principalmente em hidrelétricas. No ano passado, o setor foi responsável por 18% das emissões de gases do efeito estufa.
Historicamente, a maior parte das emissões brasileiras é provocada pelo desmatamento e mudanças no uso da terra que, no ano passado, jogaram mais de 1 bilhão de toneladas de CO2 na atmosfera (46% do total). Em seguida, veio a agropecuária, com 28% das emissões de 2023, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima. O setor de resíduos e os processos industriais responderam, cada um, por 4%.
Ainda assim, diz Shigueo Watanabe Jr., o novo mercado de carbono pode ajudar grandes indústrias a tomar decisões de descarbonização. Para ele, o sistema brasileiro deveria incluir obrigações primeiro para os grandes emissores, como a indústria de cimento e o setor de siderurgia.
"O Brasil está puxando a fila e se colocando em uma posição de liderança para regulação de mercado de carbono para países de economia agrária e de clima tropical. O Brasil tem chance de exportar metodologia de clima tropical", diz Leonardo Munhoz, pesquisador do Observatório de Bioeconomia da FGV e do FGV Agro.
Nesse sentido, o projeto também estabelece que responsáveis por alguma atividade que reduza emissões poderão emitir Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE's) com critérios e metodologias a serem credenciadas pelo órgão gestor do sistema.
O texto também permite diferentes formatos de programas de "Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal", conhecidos pela sigla REDD+. Esses programas geram créditos por ações de reflorestamento ou por evitar as emissões que seriam causadas pelo desmatamento (quando árvores são cortadas e a área é queimada, o carbono armazenado nas plantas e no solo é liberado para a atmosfera). Preservada, a floresta não apenas deixa de emitir como absorve carbono por meio do processo de fotossíntese.
Pelo PL, os governos estaduais poderão criar os chamados "programas jurisdicionais REDD+" para receber pagamentos com a venda de créditos emitidos pelo controle do desmatamento. O governo do Pará, por exemplo, se adiantou e já criou um sistema jurisdicional por meio do qual firmou um acordo para vender quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono para redução do desmatamento.
Regras para o mercado voluntário
Empresas privadas também poderão comercializar no mercado voluntário créditos de carbono florestais, gerados a partir de projetos REDD+, os mais comuns no Brasil.
Diferentemente do mercado regulado, em que empresas são obrigadas por lei a respeitar suas cotas de emissões, no mercado voluntário não há obrigação. Empresas que querem compensar sua poluição, por causa de suas próprias metas ou para atender demandas do mercado consumidor, compram créditos de carbono gerados por projetos privados certificados por organizações internacionais.
O mercado voluntário já vinha funcionando no Brasil sem nenhuma regra ou limite estabelecido pela legislação, levando a várias denúncias de irregularidades, projetos sobrepostos a terras públicas e casos de violações de direitos de comunidades tradicionais, como povos indígenas e ribeirinhos. Em muitos casos noticiados pela imprensa, essas comunidades não receberam nenhum valor pela venda dos créditos gerados em áreas de seus territórios.
Para Ciro Brito, analista de Políticas de Clima do Instituto Socioambiental (ISA), o projeto de lei pode ajudar a mudar esse cenário. "Algumas salvaguardas que já são regras hoje no Brasil, via Resolução 15 da CONAREDD+ [Comissão Nacional para REDD+], passariam a ser lei. E [são] justamente as que mais geraram controvérsia, como a [falta de] consulta prévia e a porcentagem de repartição de benefícios", explica ele.
O texto define que os povos indígenas e comunidades tradicionais podem autorizar projetos de crédito de carbono e de geração de CRVEs depois de passarem por uma consulta "livre, prévia e informada", como definido por convenção internacional, com supervisão do Ministério dos Povos Indígenas, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério Público Federal. O processo de consulta deverá ser realizado pelos desenvolvedores dos projetos.
"Essa é uma salvaguarda importante, que define quem vai pagar (desenvolvedoras) e quem vai participar e supervisionar (os respectivos órgãos elencados). Mas não avança em definir quem vai fazer a consulta. Esse tema pode ser incluído numa futura regulamentação da Lei do Mercado de Carbono", explica Brito.
Além disso, indígenas e comunidades tradicionais terão direito sobre, "pelo menos" 70% dos créditos de carbono ou CRVEs gerados por projetos REDD+ em seus territórios. No caso de títulos emitidos por outros projetos de remoção (que não foram especificados no texto do PL), as comunidades ficarão com, no mínimo, 50%.
Nos últimos anos, comunidades tradicionais vêm registrando o aumento do assédio de desenvolvedoras de projetos de carbono, inclusive estrangeiras. Segundo a Funai, pelo menos 61 processos sobre projetos de carbono já passaram pela Coordenação de Políticas Ambientais. Em 2021, a Coordenação elaborou uma nota técnica com orientações sobre o assunto, na qual afirmava que a Funai já atuou para buscar a nulidade de contratos elaborados por empresas que impediram a execução de "práticas tradicionais", não previam cláusulas de rescisão ou que firmaram acordos com poucos indivíduos, "sem a devida participação e o consentimento livre, prévio e informado dos grupos afetados".
No ano passado, o escritório de advocacia Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos analisou 56 projetos de crédito de carbono no Brasil registrados em uma certificadora internacional. Destes, 11 estavam totalmente sobrepostos a terras públicas (como Terras Indígenas, territórios quilombolas e Unidades de Conservação de Uso Sustentável) e outros 22 estavam parcialmente sobrepostos a essas áreas.
Mercado de carbono sem agro
Segundo maior setor emissor do Brasil, a agropecuária não estará sujeita a cotas de emissão. Conforme o PL, a "produção primária agropecuária" não terá que cumprir obrigações do SBCE.
No ano passado, a Pública já havia mostrado como a articulação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista, conseguiu esta e outras concessões.
Para especialistas, a exclusão da agropecuária faz sentido pela dificuldade de aferir as emissões do setor, que variam conforme o cultivo e o tipo de rebanho. Ainda não há metodologias bem estabelecidas para esse controle.
"Do ponto de vista operacional é muito complicado, tanto que nenhum país do mundo contempla o agro nos seus mercados regulados", explica Munhoz.
Para Ciro Brito, do ISA, no entanto, como a lógica do sistema definido pelo PL é de emissões e não de definir setores, não tem porque um setor ser excluído – ainda mais sendo ele o maior emissor do país.
Outro ganho da FPA é a possibilidade de que os produtores rurais vendam créditos de carbono gerados a partir de projetos de manutenção ou recomposição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal. Acontece que o Código Florestal, lei aprovada em 2012, já determina que propriedades rurais mantenham áreas de APP e reserva legal. Agora, os proprietários poderão ganhar dinheiro com o cumprimento da lei.
"Um saco de soja que é exportado pelo Brasil hoje carrega consigo pelo menos 20% de floresta embutida. Se for no Cerrado, 30% ou 50%. Na Amazônia, 80%. O custo e o risco da preservação destas áreas são pagos pela produção", diz Vargas, da FGV. "É importante reconhecer, economicamente, este esforço do produtor e os benefícios ambientais que daí resultam. Inclusive porque, na prateleira do supermercado, o produto brasileiro tende a concorrer com outros, produzidos em países com exigências ambientais muito menores."
Ponta solta
Além da falta de definição sobre governança e a discussão já contratada para o futuro sobre quais serão os primeiros setores limitados por cotas de emissão, há ainda outra ponta solta que preocupa especialistas: a possibilidade de créditos de carbono emitidos no mercado voluntário serem, depois, convertidos em ativos do SBCE. É a chamada "interoperabilidade dos mercados", ou seja, o estabelecimento de uma conexão entre eles.
Em uma versão anterior do projeto, essa possibilidade não era permitida, mas ela foi incluída pela Câmara dos Deputados na atual versão do PL. Para Shigueo Watanabe Jr., essa previsão pode levar a um descontrole dos preços do mercado regulado, o SBCE.
"Se objetivo no regulado é ir aumentando o preço do carbono para o empresário decidir a hora que ele troca [uma caldeira, por exemplo], é preciso ter um controle razoavelmente bom de quanto está o preço, para [o governo] saber se aperta mais o limite. Na hora que eu abro a porta, mesmo que o projeto do mercado voluntário seja totalmente íntegro, o preço dele é definido no mercado voluntário internacional e, normalmente, esse preço é menor do que no mercado regulado, então perde o controle", explica ele.
Uma forma de remediar esse problema seria estabelecer um limite de quantos créditos do mercado voluntário poderão ser convertidos em ativos do SBCE. Além disso, o projeto aprovado já estabelece que créditos de carbono de atividades de manutenção ou manejo florestal só poderão ser convertidos caso tenham uma metodologia credenciada pelo sistema que reconheça a remoção efetiva de gases do efeito estufa.
Para Munhoz, essa conversão será uma exceção, não a regra. "O crédito vai ser auditado, nem todos os créditos do mercado voluntário vão se adaptar a isso", afirma ele, que concorda que seria preciso estabelecer um controle para evitar que o preço venha a despencar no mercado regulado.
No geral, os especialistas concordam que o estabelecimento de um sistema de comercialização de emissões é importante para a descarbonização do país.
"O SBCE, como mecanismo central na transição ecológica da economia brasileira, tem potencial para cobrir até 18% das emissões nacionais. Dessa forma, oferece uma solução de mercado para a redução de emissões setoriais, garantindo a transição econômica ao menor custo social possível", afirmou análise do Instituto Talanoa.
Segundo Watanabe Jr., durante seus anos em operação, o mercado regulado europeu, que é focado no setor energético, já levou a uma redução de 5% das emissões – percentual nada desprezível. "Dá para fazer isso no Brasil? Eu acho que dá. Não tem muito mistério, a mecânica da coisa já é conhecida e tem gente interessada em que funcione", diz ele.
SIte Oficial da AP