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163 trabalhadores libertados da escravidão - e estamos só no começo

No apagar das luzes do primeiro quarto do século 21, a justiça agiu: 163 trabalhadores chineses foram resgatados do terreno da fábrica da montadora BYD em Camaçari, na Bahia, por uma força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF) e polícias Federal e Rodoviária; o Executivo foi representado pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Por Em Sergipe

06/01/2025 às 17:24:23 - Atualizado há

No apagar das luzes do primeiro quarto do século 21, a justiça agiu: 163 trabalhadores chineses foram resgatados do terreno da fábrica da montadora BYD em Camaçari, na Bahia, por uma força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF) e polícias Federal e Rodoviária; o Executivo foi representado pelo Ministério do Trabalho e Emprego. 

Era 26 de dezembro de 2024, e eles sofriam condições de trabalho análogo à escravidão. 

Um mês antes, uma reportagem da Pública, escrita por André Uzêda e editada por Bruno Fonseca e Mariama Correia, já denunciava a situação precária: umas das fotos aterradoras mostrava um homem caído no chão depois de ter levado um chute nas costas dos seus supervisores. Segundo trabalhadores ouvidos pelo repórter, os castigos físicos eram comuns, os mestres de obra chineses os golpeavam com pontapés e socos para que cumprissem as metas do apertado prazo para conclusão das obras, em janeiro. A fábrica pretende produzir 300 mil carros por ano.

A precariedade era maior entre os trabalhadores da terraplanagem, contratados pela empresa chinesa Jinjiang Group, subcontratada da BYD. Nos alojamentos, a sujeira e a aglomeração tomavam conta. Os banheiros, imundos, aparecem nas fotos com água amarelada entupindo as pias. Alimentação precária e sem condições de estocagem e higiene. As jornadas de trabalho eram extenuantes: 12 horas por dia, de domingo a domingo. 

Semanas depois, quando os órgãos públicos libertaram os trabalhadores, verificaram que a situação era ainda pior: camas sem colchões, panelas de comida abertas no chão para alimentação do dia seguinte, um banheiro para mais de 30 trabalhadores: eles eram obrigados a acordar às 4h pra poder ir fazer as necessidades antes de começar o trabalho, às 5h30. Exausto, um trabalhador sofreu um acidente depois de ter labutado sem descanso por dias a fio. 

Mais: os contratados tiveram que pagar um "caução" para cobrir os custos da viagem da China até o Brasil, e por isso 60% do salário era retido pela empresa. Tiveram seus passaportes apreendidos e, se quisessem rescindir o contrato, teriam que pagar multas altíssimas – quem desistisse antes de completar seis meses não receberia um tostão.    

A inauguração da fábrica, como apontado na reportagem, foi apadrinhada não só pelo governador Jerônimo Rodrigues como pelo governo Lula, como parte da aproximação com a China e do fortalecimento de uma empresa que tem ameaçado o reinado da Tesla, empresa de Elon Musk. A BYD da Bahia pretende ter capacidade de produzir 300 mil carros por ano. 

Depois da inspeção, a chinesa Jinjiang Group mandou os 163 trabalhadores para um hotel e teve seu contrato suspenso pela BYD. A montadora agora está negociando com o MPT como resolver a situação desses funcionários.    

Que fique claro: a força-tarefa não aconteceu por causa da nossa reportagem; desde novembro havia uma série de fiscalizações sendo realizadas na fábrica, embora, como exposto no texto, até então os órgãos competentes não tivessem nem vistoriado os alojamentos precários. A existência do inquérito só foi anunciada no site do MPT um dia depois da nossa reportagem. No dia 2 de dezembro, a CEO da BYD, Stella Li, o governador da Bahia e o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), tiveram que responder sobre a reportagem durante uma visita à fábrica. Foram pressionados pelos colegas da imprensa. No mesmo dia, informaram que os mestres de obra que espancavam trabalhadores teriam seu visto cancelado. 

Publicar – nosso compromisso primevo e essencial –, trazer à luz do dia, chamar atenção para o caso ajudou a fortalecer uma ação rodeada de pressões e interesses políticos de todos os lados.   

A repercussão causada pela força-tarefa, com manchetes em todos os principais noticiários do país, só reforça o papel do nosso jornalismo no Brasil de 2025. 

Não esperar as autoridades. Ouvir os trabalhadores, contrastar dados e informações, analisar as imagens e documentos com paciência e critério, chamar atenção da sociedade para as condições que afetam a vida real das pessoas reais aqui, no rés do chão. Denunciar as violações e violências independente de que interesses sejam afetados. Monitorar (e não seguir cegamente) os governos e demais poderes nas suas ações e promessas. Acreditar que é possível fazer diferente.

No mesmo dia em que publicamos essas denúncias, outra reportagem, de Amanda Audi, e também editada por Mariama Correia, mostrava que alguns políticos com antepassados donos de escravizados na época imperial haviam, no Brasil de hoje, sido interpelados por trabalho análogo à escravidão nas suas terras: Jader Barbalho (MDB-PA), Jayme Campos (União Brasil-MT) e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) – este, que tem se mostrado peça fundamental no campo bolsonarista para as eleições de 2026, conforme demonstrou o anúncio-surpresa de uma possível (e inusitada) candidatura presidencial do músico Gusttavo Lima.

Não é por acaso: o Brasil de 2025 não escapa ao Brasil dos últimos 200 anos.  

Construímos o dia de amanhã sobre as ruínas do passado, e por isso escarafunchar passado e presente é a tarefa inadiável do nosso jornalismo. Investigar que Brasil é esse onde, no momento em que escrevo esta coluna, moram a mulher e o homem mais velhos do mundo, Inah e João, nascidos apenas 20 anos depois da Lei Áurea.

São os ecos desse passado que ressoam nos conflitos de terra que assolam comunidades Brasil afora, nas disputas violentas entre indígenas e criminosos que invadem seus territórios para roubar madeira e metal, nas altas cortes que silenciam uma mulher que tenta denunciar a violência sexual sofrida do marido e os sites que publicam essa denúncia, no acesso desigual à Justiça entre a família de um músico morto quando ia com a família a um chá de bebê e os militares que puxaram o gatilho 257 vezes.

Neste Brasil já entrado no segundo quarto do século 21, nossos problemas são outros e ainda são os mesmos de sempre. 

Os braços asquerosos da ideologia masculinista, nova roupagem para a defesa do patriarcado, ecoam na disputa entre Elon Musk e o STF, e na maneira como suas antenas Starlink se alastraram como fogo na Amazônia. O lobby que compra políticos para deixar a comida menos comida e mais maléfica à saúde da maioria. O assédio sexual corriqueiro em diferentes instituições da capital do país, onde o poder se concentra ainda desproporcionalmente na mão dos homens. O trabalho precarizado pelos aplicativos de entrega, em que quase 70% dos trabalhadores são negros. A violenta neocolonização do pensamento por um punhado de big techs, a grande maioria situada em apenas uma região na costa oeste dos Estados Unidos, o Vale do Silício. O uso das redes sociais para construir, espalhar, difundir mentiras que normalizam o horror e corroem a crença na nossa jovem democracia. Os novos e velhos interesses que atuarão para minar a 30ª Conferência do Clima da ONU, que ocorrerá em novembro em Belém, sob os olhos atentos das populações indígenas e a expectativa de resolver o financiamento climático e renovar compromissos com a redução de emissões de gases poluentes. 

Em 2025, vamos cobrir tudo isso com atenção. Seguiremos fazendo jornalismo, investigando, entendendo e explicando essas pontes entre o presente e o passado – e quiçá o futuro.

Faremos isso, repito, porque acreditamos que, no nosso Brasil grande e rico, o Brasil que hoje se emociona com o Globo de Ouro à atriz Fernanda Torres, esse mesmo Brasil-cor-e-contraste, é possível fazer diferente. 

E, para isso, a gente precisa de você, que, assim como nós, acredita no jornalismo da Pública. É com o seu apoio que conseguiremos continuar realizando esse trabalho que faz a diferença. Estamos na reta final da nossa campanha para arrecadar R$ 50 mil para fechar o faturamento de 2024 e botar em prática grandes projetos para 2025. Não queremos deixar nenhum plano para trás. Faça parte!

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