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Amazônia

40 anos após o contato, os Arara enfrentam invasões e problemas de saúde e educação

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O contato com o povo Arara na região de Altamira (PA), em 1981, foi um dos mais dramáticos e demorados da história da ditadura civil-militar (1964-1985). Ao longo de uma década, eles resistiram a qualquer aproximação, como reação às perseguições e massacres cometidos por não indígenas em mais de cem anos contra esse povo até então isolado. No início do século 20, eles foram quase que totalmente exterminados.

Com a ditadura em seu auge na década de 1970, o governo federal estava determinado a retirar esse povo do isolamento voluntário porque pretendia passar, bem no meio da terra Arara, uma das obras emblemáticas da ocupação militar na Amazônia naquela época, a Transamazônica. Não seria uma tarefa fácil.

A mando militar, já que a Funai era toda chefiada nos altos escalões por generais e coronéis, diversas equipes da Fundação Nacional do Índio (Funai) tentaram uma aproximação e foram rechaçadas a flechadas, como as que acertaram, em junho de 1979, Afonso Alves da Cruz (1935-2017), o Afonsinho, um lendário sertanista dos quadros do órgão indigenista.

Em 1976, os Arara mataram e decapitaram três operários da Companhia de Produção de Recursos Minerais (CPRM), uma estatal que fazia pesquisa de sulfetos e havia aberto uma picada de 15 km dentro do território indígena a partir da Transamazônica. Num raro sincericídio, o então presidente da Funai, o general Ismarth de Araújo Oliveira, disse na ocasião ao jornal O Estado de S. Paulo: "Possivelmente foi uma represália a alguma coisa que [os indígenas] sofreram. Quem sabe não foram escorraçados de suas terras? Nesse caso, eles agiram nada mais nada menos do que em defesa da terra".

Os Arara eram conhecidos pela sua resistência férrea contra a construção da Transamazônica. Foram um dos povos indígenas que mais enfrentaram algum plano da ditadura militar na Amazônia. Claro que era uma resistência débil, formada por um pequeno número de homens e mulheres armados apenas com flechas e bordunas, quase nada ante a enormidade da população não indígena que se aproximava cada vez mais, dia após dia, com tratores, máquinas, aviões e colonos, sempre com o apoio oficial da ditadura. Além de abrir a grande estrada, a ordem era "colonizar" a região.

O quadro mudou em 1980, quando o sertanista da Funai Sydney Possuelo foi escalado para entrar em campo a fim de fazer o tão aguardado contato com os Arara. Finalmente concretizado em fevereiro de 1981, o contato foi cercado de uma série de cuidados, como remédios e comida. Possuelo não queria viver os problemas do passado, quando os contatos levaram doenças letais para as quais o organismo dos isolados não estava, nem está hoje, preparado para enfrentar. Apesar de todas as precauções, entre seis e sete Arara faleceram por doenças adquiridas pelos indígenas após o contato.

Uma paz momentânea foi feita na região, inclusive com a expulsão, por Possuelo, de diversos invasores, mas toda a operação de contato produziu um efeito duradouro no sertanista. A partir de então, ele trabalhou e conseguiu alterar a política indigenista oficial do governo brasileiro, instituindo o que, até os dias de hoje, é um dos seus pilares: contatos com isolados, de um modo geral, e com a exceção em casos extremos, não devem mais ser realizados pelo Estado brasileiro. É a chamada "política do não contato". De certa forma, portanto, a resistência Arara também produziu essa transformação.

Eles também escaparam ao extermínio. Em outubro de 1983, calculava-se que os Arara, divididos em dois grupos, somavam cerca de 80 pessoas. Em 2014, o governo estimou-os em 377. Um recomeço importante. Mas muitas ameaças permanecem assombrando o futuro desse povo.

Na última sexta-feira (10), mais de 40 anos depois do contato, Possuelo dirigiu-se ao gabinete da Funai, em Brasília, e entregou uma carta de quatro páginas à presidente do órgão, Joenia Wapichana. A missiva traz as conclusões a que Possuelo chegou após uma viagem às duas terras Arara no Pará, em dezembro, para a gravação de um documentário.

"O que eu posso te dizer sobre isso é que eu senti simplesmente uma tristeza. Você vê a inutilidade de todo o esforço que foi feito. A União, o Estado, gastou dinheiro, funcionários foram mortos, vários funcionários foram feridos, houve uma luta muito grande, porque os Arara resistiram muito bem. E tudo isso pra quê? Pra nada. Ao final, agora que eles precisam mais da Fundação Nacional do Índio, do apoio institucional, do apoio do Ministério Público, do apoio da polícia, desses órgãos, nada disso está acontecendo", disse-me Possuelo na noite de sexta-feira.

"Os Arara estão absolutamente largados. Perdidos, eles não sabem a quem mais recorrer. E o que acontece com isso? Isso faz com que eles procurem outros países, fazendo queixas, e dizendo que cada vez mais o Estado brasileiro não faz nada por eles, e isso acaba tendo outras consequências sobre os indígenas e sobre o Estado brasileiro. Cada vez mais, eles pedem uma ação nesses fóruns internacionais no sentido de obrigar o governo a tomar as devidas providências. O governo não vê o perigo de tudo isso. Parece não ver, não dá importância."

Após o fim da ditadura, quando foi nomeado presidente da Funai no governo Collor (1990-1992), Possuelo trabalhou para assegurar a demarcação da Terra Indígena (TI) Arara, enfim homologada pela Presidência da República, em 1991, com 274 mil hectares. Uma segunda terra Arara, a Cachoeira Seca, com 743 mil hectares, foi demarcada em 2016, no governo Dilma Rousseff (2010-2016).

Na carta à Funai, Possuelo listou os principais problemas que encontrou ao circular em aldeias das terras indígenas. Segundo o sertanista, os indígenas estimam a presença de 4 mil invasores em diversos pontos da terra Arara. Possuelo disse ter constatado, além de "incursões ilegais para caça, pesca e retirada de madeira", a "implementação de infraestrutura como tendência a consolidar ocupações ilegais no território indígena".

O sertanista citou a vila chamada Maribel, originada de uma antiga madeireira. "Este agrupamento, assim como no passado, é o principal vetor de desmatamento para retirada de madeira na TI Cachoeira Seca. Apesar de ilegal, esta infraestrutura conta com apoio do próprio Estado, com o fornecimento de energia elétrica e o financiamento de projetos agropecuários pelo banco de desenvolvimento do Amazonas. Desta maneira, sem qualquer iniciativa eficaz dos órgãos competentes e com a inoperância da Funai, a situação fundiária do povo Arara se agrava ainda mais", escreveu Possuelo.

"Meu objetivo, ao relatar essa situação, é que a Funai se antecipe na regularização fundiária, retirando todos os invasores antes que seja deflagrada tragédia de maiores proporções."

O sertanista denunciou ainda a realização de um "festival de pesca" anual realizado há 15 anos por uma autodenominada associação de extrativistas, com apoio da prefeitura de Altamira, no rio Iriri que não tem o respaldo das lideranças indígenas Arara. Disse que os indígenas já procuraram o Ministério Público Federal e a Funai, mas nenhuma medida foi tomada. Para Possuelo, o evento estimula a pesca ilegal dentro do território e é "uma festividade maior para incentivar e consolidar a invasão da terra do povo Arara".

O sertanista narrou ainda que as medidas que deveriam ter sido tomadas pela Norte Energia como compensação pela construção da hidrelétrica de Belo Monte "não foram executadas em sua integralidade". Há bases de fiscalização abandonadas, sem funcionários.

No campo da saúde, Possuelo disse que o acúmulo de lixo nas aldeias, causado pela ausência da coleta, "é assustador". Uma "enorme quantidade" de cachorros com sarna circula pela aldeia, levando doenças principalmente às crianças. As unidades básicas de saúde do território, segundo Possuelo, "se resumem a construções praticamente abandonadas, servindo como depósito de coisas inúteis". "Infelizmente, a saúde indígena se limita a dar um comprimido ou apenas solicita a remoção do paciente."

No tema da educação, Possuelo disse que encontrou uma escola interditada porque havia "uma tonelada" de fezes de morcego acumulada no teto do prédio, gerando um risco de desabamento. Os professores, segundo o sertanista, não costumam ficar mais de dois anos dando aulas nas aldeias Arara, pois logo são substituídos e vão trabalhar com outras etnias.

"É evidente que a alta rotatividade dos professores não auxilia no aprendizado dos alunos indígenas. Essa rotatividade não é pedagógica. Cada povo indígena tem as suas particularidades, e os professores devem ser capacitados nessas particularidades."

Possuelo disse à Agência Pública que seu objetivo, ao procurar a Funai, foi alertar a administração "a ser eficiente". "O objetivo é levar esses problemas porque ninguém traz esses problemas pra cá [Brasília]. Você não vê ninguém da Funai falando, e lá tem uma administração regional do órgão. O que faz aquela administração? O que interessa é que seja eficiente, é que faça o que deve fazer."

No final da sua carta à Funai, Possuelo, aos 84 anos de idade, fez um desabafo: "Será o povo brasileiro incapaz de proteger seu próprio território? Será o próprio Estado nacional o maior inimigo dos povos indígenas? Espero que o atual governo do Brasil, no povo tempo que nos resta, assuma de peito aberto seu dever de proteger e garantir os direitos dos povos indígenas".

Procurada pela Pública, a Funai não enviou resposta até o fechamento deste texto.

SIte Oficial da AP

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