Era por volta das nove da manhã do dia 25 de julho de 2020, quando um estrondo de bomba chamou atenção de Jorge (nome fictício), um dos agentes do setor de inteligência do Complexo Penitenciário Nelson Hungria (CPNH), a maior unidade prisional de Minas Gerais, localizada em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Era por volta das nove da manhã do dia 25 de julho de 2020, quando um estrondo de bomba chamou atenção de Jorge (nome fictício), um dos agentes do setor de inteligência do Complexo Penitenciário Nelson Hungria (CPNH), a maior unidade prisional de Minas Gerais, localizada em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Logo tomou ciência de que os agentes do Grupamento de Intervenção Rápida (GIR) estariam repreendendo um recebimento de maconha. Solitário naquele plantão, o policial penal tomou para si a missão de registrar o que pudesse estar acontecendo de pior: com o celular filmando escondido no colete, aproximou-se do local de origem do som e encontrou pelo menos seis agentes desse setor especializado em reação a conflitos e rebeliões – praticamente a elite policial das prisões mineiras – agredindo detentos nus ou apenas de roupa íntima.
Durante aproximadamente 25 minutos, Jorge conseguiu produzir ao menos dois vídeos aos quais a Agência Pública teve acesso. Juntos, somam quase cinco minutos de imagens nas quais os agentes, armados com escopetas e encapuzados em sua maioria desferem tapas nas nucas dos detentos, sentados no chão com o tronco jogado sobre os joelhos e as mãos para trás.
Na metade do primeiro vídeo, vê-se que um dos policiais penais, segurando o detento pelo pescoço, este de torso contorcido para frente, arremata-o com socos na altura do peito e termina por prendê-lo num mata-leão – forma de enforcamento comumente ensinada no Jiu-jitsu – contra a parede da região em que a cena se passa. No segundo vídeo, ao fundo, vê-se que outro agente lança chutes na costela de um detento de bruços no chão.
Este é um dos dois casos de tortura registrados no relatório 227/2021 da Assessoria de Informação e Inteligência Prisional de Minas Gerais, documento que estava escondido do público e que retrata torturas na penitenciária Nelson Hungria, considerada de segurança máxima.
O relatório, que também foi revelado pelo blog VainaFonte, traz a descrição de um segundo e um terceiro dia de torturas, respectivamente 16 de dezembro de 2020 e 19 de janeiro de 2021. O agente responsável pelo documento coletou depoimentos de 15 detentos que descrevem cenas muito similares. Na narrativa deles, o policial penal Paulo Henrique Vieira Boaventura Alves, à frente do GIR, comandaria as sessões de torturas. Conhecido como "01 do GIR", "Cara limpa" ou "GIR do mal", Alves recebeu esses apelidos porque ele seria o único agente a nunca usar balaclava, fazendo questão de expor o rosto. A Pública procurou a defesa de Paulo mas ele não retornou aos contatos
Na primeira data, em dezembro de 2020, o detento Edivan Lopes, segundo depoimento seu e de colegas, foi retirado de sua cela por volta das 21h junto de outros cinco presos, sendo levado para o Centro de Observação Criminológica (COC), onde é relatada uma sessão de vinte minutos de espancamento, com ele desmaiando mais de uma vez. Segundo consta no relatório: "a crença de impunidade estaria, em tese, impregnada em tal grupamento, considerando que a prática de desmaiar presos com golpes conhecido como 'mata-leão', era banalizada e utilizada como 'esporte' no trato com os detentos. Apontam desta forma, várias oitivas de IPL'S [inquéritos policiais] que em uníssono disseram, que após acordarem dos golpes, os mesmos ainda ouviam do servidor Paulo Henrique que 'está me devendo mais um desmaio'."
Em entrevista à Pública, Wellington Sippel, advogado de Edivan, explica que seu cliente, após a produção do relatório, foi transferido para outra unidade: "Meu cliente me chamou lá na penitenciária através de um outro advogado. Ele havia sofrido algumas agressões, principalmente no rosto e estava sendo ameaçado pelo pessoal do GIR. No mesmo dia, eu solicitei à penitenciária que passasse meu cliente pelo exame de corpo delito e disse que gostaria de representar contra essas pessoas que fizeram isso com ele". No fim, a solução encontrada no Nelson Hungria foi, segundo o advogado, uma transferência para uma unidade prisional de Uberlândia feita de maneira completamente indevida. "Ele não tem nenhum processo nem familiar lá", disse.
Já em janeiro de 2021, Alves e a equipe teriam retirado alguns presos de suas celas nos princípio da tarde, entre 13h e 15h, levando-os para o pátio sob sol ardente. Novamente, tal como no vídeo, o documento narra que os detentos foram obrigados a ficar ou de cueca ou completamente desnudos, forçados a sentarem no chão quente, chegando a gerar escoriações nas partes íntimas. Segundo os relatos, muitos reclamaram do desconforto e da dor, mas as reclamações eram respondidas com chutes, socos, tapas mata leões e até mesmo, num caso mais grave, com um tiro de escopeta a queima roupa na perna de um dos detentos, que teria sido levado para a enfermaria após passar alguns minutos agonizando com um buraco no membro.
O documento descreve que, após a sessão de espancamento sob o sol, os presos foram levados para o banheiro e para uma das "gaiolas" (nome dado para o espaço gradeado que serve de transição entre pavilhões e setores da unidade), onde a sessão de espancamento recomeçou, com presos descrevendo a perturbação dos sons de dor e desespero de seus pares. Outro detento teria recebido um disparo no corpo, neste caso nas costas, enquanto outros dois apanharam com o cano das escopetas.
Nos depoimentos, é comum que os presos sejam ameaçados para que não denunciem as torturas. Dizem os detentos que Alves e companhia ameaçavam não apenas a integridade física dos presos, como também a de seus familiares e visitantes, deixando claro que, caso viessem a delatá-lo, sofreriam consequências amplas e irrestritas. Um detento reconhecido como dedo duro de um esquema de extorsão pelas agentes, afirma que ouviu dos policiais que ele "estava complicando os amigos de farda, prejudicando o corre, [os policiais ficaram] me ameaçando falando que iria me colocar no coque e que iria me degolar e pendurar na 'TIRA' e me levaram para o COC [Centro de Observação Criminológica]". Segundo a reportagem apurou, "pendurar na Tira" é quando se mata um detento e cria uma cena para falar que houve um suicídio.
Os vídeos e nos depoimentos indicam que a administração da penitenciária saberia e autorizaria as torturas.
O agente de inteligência Jorge relatou em oitiva ao Gaeco, obtida pela Pública, que a operação que resultou na sessão de tortura captada em vídeo teria sido coordenada pelo Diretor Adjunto Marco Aurélio Francisco Júnior, que, segundo o depoimento, não estaria no local, e o agente Edmar Augusto, que estaria presente no pavilhão, mas não na cena da tortura.
Nos casos de dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, os relatos relatam que o "diretor de segurança Daniel Costa Sousa e o coordenador Charley Soares Lima" teriam assistido às sessões de tortura.
A fim de não deixar registros das ocorrências violentas, segundo o relatório, os funcionários da GIR recorreriam a duas técnicas para maquiagem de seus atos: adulterar boletins internos sobre o que levou os detentos a apareceram escoriados e, perante os profissionais de saúde da unidade, inventar situações que explicassem o encaminhamento dos detentos para a enfermaria.
Como consta no relatório: "Em consultas sistêmicas, foram localizados o Boletim de Ocorrência Interna – BOI 3031, da mesma data citada, onde o servidor Paulo Henrique [Alves] '01 do GIR', narra que o detento Edivan Lopes Basílio, em tese, teria desobedecido ordem legal para sair de sua cela de posse de seus itens pessoais, para ser conduzido para COC, sendo necessário o uso de força diferenciada, cumulado com técnicas de imobilização e algemamento na 'proporção da oposição oferecida'.
Segundo o documento, há indícios de que os registros podem ter sido manipulados. Analisando a suposta planilha de controle de Boletim de Ocorrência Interna, a numeração estaria datada de 11/12/2020, ou seja, cinco dias antes da suposta agressão ao detento Edivan Lopes Basílio.
Na enfermaria, segundo o relatório, os agentes do GIR normalmente apresentavam os detentos justificando que eles estavam machucados devido a terem entrado em conflito por pertencerem a facções diferentes, o que estes, muitas vezes, negavam.
O detento rechaçado por delatar o esquema de extorsões dos policiais penais foi levado à enfermaria com intenso sangramento, que os agentes explicaram se tratar de uma tentativa de suicídio. Em depoimento, o prisioneiro explica: "Não me envolvi em nenhuma tentativa de autoextermínio (sic). O que aconteceu é que na data de ontem, fui espancado pelo Sr. Ferreira e pelo Sr. Ramos que estavam na inspetoria ontem. O motivo das agressões físicas é uma denúncia que fiz ao serviço de inteligência sobre a corrupção que acontece na equipe que irá trabalhar amanhã. Fui levado para a enfermaria por causa dos ferimentos. Ontem à noite, fui ameaçado por eles, dizendo que iria cortar minha cabeça."
Segundo o relatório e a oitiva, Jorge repassou os vídeos ao seu superior, o assessor regional Luciano Caldeira e ao assessor-chefe Nilson Amaral, que teriam avisado o Diretor Geral, José Fábio Piazza. Segundo o relatório, um segundo agente de inteligência teria assistido aos vídeos ao lado dele.
Paulo Alves, o comandante do Grupamento de Intervenção Rápida, só viria a ser afastado do cargo em fevereiro de 2021 e efetivamente exonerado em 12 de outubro de 2023, após duas promoções em 2021 e 2022, segundo consta no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais (DOEMG). Piazza, diretor geral do presídio, passou incólume pela citação do nome no relatório, tendo inclusive alçado ao cargo de Superintendente de Segurança Prisional no Departamento Penitenciário de Minas Gerais. Procurado pela Pública, Piazza afirmou que tudo foi devidamente apurado por órgão externo e que ele não foi acusado formalmente em nenhum processo.
Em áudio enviado a grupo de colegas e registrado em relatório, Alves explica que sua saída foi para poupar outros colegas, dando a entender que teria servido de bode expiatório: "Ele [agente de inteligência] tem um vídeo do dia 25/11, 25/07 do ano passado e nesse vídeo lá tá eu, Lazzari, Rubão [agentes não identificados pela reportagem], entendeu? E nesse dia especificamente eu apaguei três presos e ele filmou com câmera escondida no colete, entendeu? E essa filmagem aí velho, ele tá utilizando ela para barganhar com diretor e conseguir o que ele quer. Aí ele ameaçou o diretor, entendeu? Pediu a minha retirada e de mais quatro cara. Aí eu segurei tudo no peito dos quatro pra ninguém ser prejudicado, mas eu infelizmente tenho que sair". O relatório interno cita essa passagem como indício que a integridade física do agente estaria comprometida. Em sua oitiva ao Gaeco, o Jorge disse temer profundamente por sua segurança.
A reportagem questionou o juiz da Vara de Execução Penal responsável pela fiscalização da penitenciária, Wagner de Oliveira Cavalieri, que visitou a unidade em janeiro de 2021 e teria ouvido dos detentos denúncias sobre os agentes do GIR. Cavallieri começou perguntando para o repórter se ele residia em Niterói. Em seguida, negou que a penitenciária receba muitas reclamações e denúncias de tortura. "É importante ressaltar que a Penitenciária Nelson Hungria abriga aproximadamente 2600 presos e as reclamações de maus tratos são excepcionais”.
Ainda segundo o magistrado, organizações criminosas costumam usar esse artifício para tentar obstruir o trabalho de policiais penais sérios que não permitem a entrada de ilícitos na unidade prisional ou que não pactuam com práticas proibidas. “O Ministério Público instaura procedimentos investigativos sempre que verifica mínimos indícios de ocorrência de maus tratos ou de eventual tortura. Pode-se dizer que a Nelson Hungria ainda é uma das melhores unidades prisionais do estado e as reclamações relativas ao tratamento são excepcionais e devidamente apuradas", acrescentou.
Apesar do relatório citar que Alves foi afastado do GIR em fevereiro de 2021, institucionalmente, as respostas sobre o ocorrido começaram em 20 de março, quando dez agentes foram inseridos no Processo Administrativo Disciplinar 76/2021.
Alguns meses depois, o MPMG, por meio da 11ª Promotoria de Justiça de Controle Externo da Atividade Policial de Contagem e do Gaeco, deflagrou a Operação Touro de Bronze, justamente para investigar denúncias de tortura no CPNH. À época, 14 agentes foram alvos. Paulo Alves foi exonerado em outubro junto a outro agente de segurança. Luciano Caldeira e Nilson Freitas foram suspensos por 15 dias. Outros agentes pegaram suspensão de 90 dias.
Em nota, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) confirmou que o processo interno teve o trâmite finalizado em outubro de 2023, reiterando que a secretaria "não compactua com desvios de conduta de seus profissionais. Todas as situações de desvio são acompanhadas com rigor, e as medidas administrativas cabíveis são adotadas no âmbito do devido processo legal, resguardando sempre o direito à ampla defesa e ao contraditório".
Em 2024, advogados dos agentes tentaram um mandado de segurança na segunda instância para anular as decisões. Em seu voto, o desembargador Marcílio Eustáquio Santos negou todas teses da defesa dos agentes, que questionavam as denúncias por falta de materialidade e gravação ilegal.
"Os vídeos em questão foram gravados no interior da unidade prisional, em espaço coletivo (e não diretamente em uma cela habitada), local sob permanente vigilância do Estado, sendo que tudo o que ocorre no interior do referido estabelecimento que não diga respeito diretamente à intimidade do preso ou dos servidores é de interesse público", decidiu o desembargador.
O sistema prisional de Minas Gerais vem, há anos, sendo alvo de críticas de pesquisadores e entidades que defendem os Direitos Humanos no Estado. Um relatório recente do grupo Desencarcera, uma plataforma colaborativa que recebe, filtra, cataloga e contextualiza denúncias no sistema prisional, reuniu relatos coletados no primeiro semestre de 2024. Em 6 meses, foram 278 denúncias de tortura, falta de água e comida estragada.
Segundo o pesquisador Guilherme Cardoso, um dos responsáveis pelo Desencarcera,, a situação do presídio Nelson Hungria expõe um problema sistemático. “Desde o início da plataforma, em 2018, recebemos 157 denúncias relativas à penitenciária, tanto de violação de direitos das pessoas presas como de seus familiares".
O pesquisador, ligado ao Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos da UFMG, disse que a situação na unidade está ainda mais complicada após uma recente decisão do juiz Wagner Cavalieri de interditar parcialmente o presídio em função da superlotação e baixo efetivo. Atualmente, o local está com 61,3% mais presos do que a capacidade. Além disso, 142 servidores foram exonerados em janeiro de 2025, dificultando ainda mais o funcionamento do complexo. Em sua decisão, o magistrado afirma que os servidores já estão tendo dificuldades para as movimentações internas e externas de presos e que estão aumentando os casos de indisciplina.
Em entrevista de um mês atrás ao programa Direto da Redação com Laudívio Carvalho, do portal Tempo, o presidente do Sindicato dos Policiais Penais de Minas Gerais, Jean Otoni disse que a situação tende a se deteriorar no complexo, já que 23% da força de trabalho foi exonerada. "Até o momento, o Governador [Zema] não compreendeu que a Nelson Hungria é um verdadeiro barril de pólvora. A falta de investimentos na segurança pública não impacta apenas os policiais, mas toda a sociedade, colocando todos em risco.”
O próprio relatório 227, que dá origem à essa reportagem, explicita em seu final que excessos e truculências praticadas por servidores dentro das unidades prisionais podem contribuir com o fortalecimento das Organizações Criminosas e com o convencimento de mais adeptos à ideologia como forma de apoio à massa carcerária.
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