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Após quase dois anos em que se arrasta o embate no governo federal sobre o pedido da Petrobras para prospectar petróleo na foz do Amazonas, o tema voltou à tona nesta semana, desta vez com a sinalização do presidente Lula de que o governo dará, em breve, a licença ambiental para a operação.
A promessa, de acordo com reportagem do jornal O Globo, depois confirmada por outros veículos de imprensa, foi feita a Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) na segunda-feira (3), em uma reunião reservada na qual estava presente também Hugo Motta (Republicanos-PB), dois dias depois de ambos terem assumido a presidência, respectivamente, do Senado e da Câmara.
O senador é um dos maiores defensores no Congresso da exploração de óleo e gás na região sob o argumento de que ela favoreceria a economia de seu estado. É entre a costa do Amapá e do Pará que fica localizado o chamado bloco 59, alvo de exploração.
Nesta quarta-feira (5), o próprio Lula defendeu abertamente a atividade em entrevista a rádios de Minas Gerais. “Queremos o petróleo, porque ele ainda vai existir muito tempo. Temos que utilizar o petróleo para fazer a nossa transição energética, que vai precisar de muito dinheiro. A gente tem perto de nós a Guiana e o Suriname pesquisando o petróleo muito próximo a nossa margem equatorial”, disse o presidente.
De acordo com reportagem da Folha, há uma expectativa da Casa Civil e do Ministério de Minas e Energia, com apoio do próprio Palácio do Planalto, de que o Ibama conceda ainda no primeiro semestre a licença para a prospecção de petróleo na região que compõe a Margem Equatorial.
Ainda segundo a reportagem, há pressa na liberação para que ela ocorra bem antes da 30ª Conferência do Clima da ONU, a COP30, que será realizada em novembro em Belém. "Tudo o que o governo federal não deseja, ao se posicionar como liderança global em transição energética, é ser apontado como uma nação que continua a ampliar a exploração de combustíveis fósseis", escreve o repórter André Borges.
A decisão do licenciamento cabe ao órgão ambiental, que vetou o pedido da Petrobras logo no início do terceiro mandato de Lula, em maio de 2023, sob o argumento de que havia "inconsistências preocupantes para a operação segura em nova fronteira exploratória de alta vulnerabilidade socioambiental", como justificou o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em seu despacho.
A Petrobras recorreu e, desde então, vem tentando reverter a decisão, com a apresentação de novas informações, além da construção de uma unidade de atendimento à fauna para o caso de um vazamento de óleo – o que está sendo feito em Oiapoque (AP) e deve ficar pronto em março. Agostinho, em entrevista ao Valor alguns dias antes da conversa de Lula com Alcolumbre, havia dito que a decisão só será tomada depois da entrega da obra. "Não temos como emitir a licença sem uma estrutura montada. O que não quer dizer que a licença saia logo depois [que a obra estiver pronta]. Nem eu sei se será aprovada ou não. Isso é de responsabilidade da equipe técnica", disse.
O Ibama, sofrendo pressão de todos os lados, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, vêm batendo constantemente na tecla de que se trata de uma decisão técnica – não política. Como lembra Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, é o mesmo processo que já ocorreu muitas outras vezes.
"Não deveria haver emissão de qualquer licença ambiental no grito. O Ibama já emitiu mais de 2 mil licenças de perfuração offshore. Está negando uma e ela virou bandeira para um ‘liberou geral’ na Margem Equatorial", disse, em reação à declaração de Lula nesta quarta.
"A região do bloco 59 é ambientalmente muito sensível e com correntes fortíssimas. Os técnicos do Ibama têm apontado há anos os problemas associados a essas condições. Se o governo fizesse avaliações ambientais das áreas sedimentares, previstas desde 2012, a bacia da foz do Amazonas já teria sido qualificada como inapta para a produção de petróleo", complementa Araújo.
Na tentativa de evitar essa polemização mencionada por Araújo, Marina e Agostinho buscaram, desde o princípio, posicionar essa discussão no âmbito técnico do licenciamento. A licença não foi dada porque o projeto não atende às exigências mínimas de segurança. Simples assim. Algo como: melhorem esse projeto aí, que a gente avalia de novo.
Lula parece ter entendido isso e eximiu Marina das acusações de que ela estaria "atrasando". "Há uma confusão na imprensa, sei lá causada por quem, de tentar jogar em cima da companheira Marina a responsabilidade pela não aprovação da exploração de petróleo na Margem Equatorial do rio Amazonas [foz do Amazonas]. A Marina não é a responsável", disse.
Mas o que ele não faz é debater o cerne da questão. Não vem se colocando abertamente em discussão o elefante na sala: se houver mesmo todo o petróleo que se imagina na região e ele for explorado, vai ser uma bomba de emissões de gases de efeito estufa em um planeta que precisa urgentemente freá-las.
Além dos potenciais riscos locais da exploração de petróleo na região, tanto para a biodiversidade quanto para as comunidades ribeirinhas, a abertura de uma nova fronteira de exploração de petróleo – e o consequente aumento da oferta e do consumo do combustível – vai colocar mais gasolina na fogueira que já está deixando a Terra cada vez mais quente. Só que essa conclusão óbvia só vem aparecendo nas críticas de ambientalistas.
(Aliás, depois de 2024 ter batido o recorde de calor, janeiro manteve o ritmo e foi o mais quente dos registros – a bagatela de 1,75 °C acima dos níveis pré-industriais, segundo dados do sistema europeu Copernicus, mesmo com um La Niña, que traz resfriamento do oceano, em curso.)
Marina Silva e a equipe do Ministério do Meio Ambiente sabem muito bem disso e têm plena noção de que a piora do aquecimento global pode, inclusive, colocar a Amazônia no temível ponto de não retorno, em que ela pode perder a capacidade de produzir chuva e atuar como um sumidouro de carbono.
O Brasil vem conseguindo reduzir sua contribuição para o aquecimento global por meio da queda do desmatamento da Amazônia. Mas, mesmo se for capaz de zerar a perda da floresta, como prometido pelo governo, as emissões provenientes da queima do petróleo da foz do Amazonas vão anular esses ganhos.
Só que no âmbito da ala energética, Casa Civil e Planalto, todo o imbróglio da foz do Amazonas passa ao largo de um debate muito mais amplo e profundo que deveria estar sendo feito de política energética, de avaliar os riscos profundos de continuar investindo em ampliar a oferta de combustíveis fósseis no país.
Verdade seja dita, outros países produtores de petróleo seguem na mesma toada. Ninguém parece disposto a estabelecer um cronograma para dar um fim a esse uso.
“Precisamos fazer um acordo e encontrar uma solução em que a gente dê garantia ao país, ao mundo e ao povo da Margem Equatorial que a gente não vai detonar nenhuma árvore, nada do rio Amazonas, nada do oceano Atlântico”, disse Lula na entrevista às rádios de Minas.
Correta e necessária a preocupação com os impactos locais. Mas e os impactos sobre as mudanças climáticas? Nenhuma palavra. O que restou na fala de Lula foi o mantra que vem sendo repetido à exaustão por toda a trupe, de Alexandre Silveira (ministro de Minas e Energia) à presidente da Petrobras, Magda Chambriard (e que já era entoado também por Jean Paul Prates, que ocupou o cargo antes dela). De que será o petróleo que vai financiar a transição energética.
Uma ladainha que até hoje não foi seguida de um plano mostrando como vai se dar esse aporte. Como vai ser essa transição – que, veja, como o nome diz, significa ir de um lugar a outro. Sair dos fósseis em direção às renováveis. Não adianta nada dizer que o país vai ser um líder em energia limpa se continuar ofertando petróleo ao mundo. Mesmo que ele não seja queimado aqui. É um ou outro. Não um e outro.
"O problema dessa história linda de petróleo bancando a transição é que ela não está acontecendo", escreveu Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima, no Valor, no ano passado.
Ele citou um dado apresentado pelo economista-chefe da Agência Internacional de Energia, Tim Gould, em 2023, de que apenas 1% dos investimentos em energia limpa feitos no mundo vêm de empresas de óleo e gás. "O consórcio Climate Action Tracker mostrou em 2022 que apenas quatro países do mundo (Reino Unido, Bulgária, Itália e Romênia) taxaram os lucros extraordinários para bancar energia limpa", complementou Angelo.
No Brasil, o que tem ocorrido é um aumento de gastos do governo com os combustíveis fósseis muito maior do que com as fontes renováveis. De acordo com análise do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) do ano passado, os subsídios para a produção dos fósseis saltaram de R$ 36,3 bilhões em 2022 para R$ 41,9 bilhões em 2023. Para cada real investido na produção de energia limpa, outros R$ 2,63 são direcionados para fósseis.
Se considerada a soma dos incentivos à produção e ao consumo, os subsídios aos combustíveis fósseis são 4,5 vezes maiores do que os direcionados às energias renováveis.
Chama atenção que o governo realmente considere que, se liberar a exploração na foz do Amazonas agora, vai ter tempo para que todo mundo se esqueça disso até novembro e a decisão não reverbere na COP30. Chega a soar ingênuo. Não vai passar ileso. Isso não vai ser esquecido. E, sim, pode comprometer as habilidades e o moral do país de tentar costurar um acordo mais ambicioso.
"É um escárnio que o governo brasileiro esteja tentando usar a COP30 para fazer greenwashing de uma decisão que está pingando óleo sujo, entregando à indústria petrolífera uma das áreas mais importantes do mundo para a proteção climática", comentou Kumi Naidoo, presidente da Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis.
"Em uma era de políticas retrógradas como a “drill, baby drill” de Trump, líderes progressistas como Lula devem se levantar e honrar em casa a imagem que desejam projetar internacionalmente. Se o Brasil quiser ser um verdadeiro líder global em 2025, deve reconhecer que os combustíveis fósseis devem ser deixados no passado – e no solo", continuou o ativista.
Importante lembrar que está em jogo nessa cúpula fazer vingar uma decisão meio capenga estabelecida na COP28, em Dubai, de dar início a uma "transição para longe dos combustíveis fósseis". Foi a primeira vez nas COPs, justo num petroestado, que houve uma menção, mesmo que tímida, para se estabelecer um fim dos combustíveis fósseis. Mas o documento ficou só no campo das intenções, sem meta concreta. Quase desapareceu na conferência seguinte, em Baku, no ano passado. E ficou de fora da declaração do G-20, no Brasil, também em 2024.
O mundo espera que a COP em Belém dê conta de mostrar o caminho para o fim dos combustíveis fósseis. Espera que o país lidere pelo bom exemplo. Explorar a foz do Amazonas não vai ajudar em nada.
SIte Oficial da AP