O motorista de aplicativo Yago Mariano da Silva, um jovem negro de 25 anos, deixou o Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente, no litoral paulista, onde passou nove meses preso por um crime que, segundo ele, não cometeu.
O motorista de aplicativo Yago Mariano da Silva, um jovem negro de 25 anos, deixou o Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente, no litoral paulista, onde passou nove meses preso por um crime que, segundo ele, não cometeu. Silva foi condenado por tráfico de drogas, mas terminou sendo absolvido por uma reviravolta no processo. Os policiais que o prenderam não usavam câmeras, mas, com os registros de deslocamento e o GPS da viatura, a defesa conseguiu apontar indícios de que os agentes teriam implantado drogas em uma abordagem para incriminá-lo.
Em 5 de novembro de 2024, Silva deixou a prisão. A sentença que o inocentou só foi possível porque a defesa dele solicitou à Polícia Militar (PM) o serviço de telemetria veicular – equipamento que permite o monitoramento da viatura onde estavam os policiais militares que fizeram a abordagem do motorista de aplicativo. Os PMs afirmavam que tinham levado o réu diretamente para a delegacia, mas o registro do caminho feito pela viatura era diferente.
Ao confrontar os registros divergentes, o juiz Rodrigo Barbosa Sales, da 3ª Vara Criminal de São Vicente, defendeu a sentença de absolvição da seguinte forma: "Nota-se que o relatório de itinerário de viatura [â¦] apontou o trajeto percorrido às 13h39, horário da ocorrência. Ao contrário do que afirmou a testemunha de acusação, os policiais não foram diretamente ao 3º Distrito Policial após a prisão do réu".
De acordo com Silva, a prisão aconteceu no dia 4 de março de 2024, quando ele saiu para comprar leite a pedido da esposa. Após ter passado pelo mercado, optou por encomendar uma marmita para que pudesse almoçar com a família em seu dia de folga. Na fila da lanchonete, que fica no cruzamento da rua Sorocaba com a avenida São Paulo, ele escutou o barulho de uma porta de carro se abrir. Era uma viatura da PM, de onde desembarcaram os policiais militares tenente Rômulo Lima Porto Tardan e soldado Marcos Antônio da Silva Santos.
O tenente Tardan foi quem fez a primeira abordagem. Segundo Silva, o policial perguntou onde ele morava e a localização do ponto de venda de drogas da comunidade onde ele vive, o Parque Continental, em São Vicente. "Eu respondi pra ele: 'Eu não sei, doutor, não sou usuário e nem vendo droga, estou aqui apenas pra comprar marmita'. Mas eles [PMs] não acreditaram", disse.
Yago da Silva disse que os policiais insistiram em saber quem eram os traficantes e quem domina o tráfico de drogas na comunidade. Mais uma vez, o motorista respondeu que não sabia. "Eles [PMs], então, falaram assim: 'Você acha que nós somos bestas? Nós não somos bestas, não. Tu sabe muito bem quem é'. Aí eles puxaram o meu nome e falaram que iam me levar pra uma averiguação [na delegacia]", contou o motorista.
Uma das alegações dos policiais para levar Silva à delegacia era que ele estava sem documentação no momento da abordagem. "Eu falei que não tinha necessidade [de ir para a delegacia], que, se ele quisesse, a minha esposa apareceria com o meu documento. Ele falou assim: 'Não, não precisa não! Não é tu que vai ensinar a fazer o nosso trabalho não'", disse.
Dentro do chamado "camburão" da viatura, o trajeto feito pelos policiais militares despertou a preocupação do motorista. Afinal, o caminho não parecia ser para a delegacia mais próxima, que fica a nove minutos do local onde a abordagem aconteceu. A paisagem, ao longo do trajeto, era pouco urbana e repleta de matas.
Quando finalmente a viatura parou, os policiais desembarcaram Yago da Silva em um terreno baldio, numa área conhecida como "invasão" por ter sido ocupada de forma irregular por famílias de baixa renda do bairro Rio Branco, a três quilômetros de distância do local da abordagem.
Ali, ele teria sido uma vez coagido a responder a perguntas. "Eles [PMs] disseram que só iam me liberar se eu desse uma arma pra eles ou uma casa com drogas", contou. "Então, eu falei: 'Não tem como eu apontar para o senhor uma casa [com drogas], eu não sou envolvido com nada, não tenho essa informação para o senhor, eu sou trabalhador", disse Silva.
Sem trazer as respostas e a arma que os policiais tanto pediam, Yago da Silva disse que foi levado de volta ao camburão e direcionado à delegacia depois de meia hora de conversa, por volta das 14h15.
Demorou três minutos, diz Yago Silva, para que os policiais chegassem até o 3º Distrito Policial (DP) de São Vicente. Quando a viatura parou no estacionamento, o motorista foi levado para a cela do DP, onde ficou até que os PMs fizessem a suposta averiguação. No entanto, os policiais militares apresentaram uma ocorrência de tráfico de drogas na delegacia.
Segundo o Boletim de Ocorrência (BO), Silva estava com uma sacola entre as pernas e nela havia porções de maconha, cocaína e crack, além de R$ 313 lucrados por meio de tráfico de drogas. O documento afirma que o motorista teria confessado o crime, algo que Silva nega. "Questionado, o indivíduo confessou aos policiais que estava no local realizando o comércio de substâncias entorpecentes", diz o documento baseado na versão apresentada pelos policiais.
A prisão em flagrante foi anunciada horas depois. "Passou um policial e eu perguntei o que estava acontecendo. Então, ele falou assim: 'Tu tá vendendo droga e tu não sabe o que está acontecendo? Tá dando uma de louco?'", disse Silva. Surpreso com a informação, ele respondeu: "Mas eu não estava vendendo droga. Eu não estava fazendo nada, eu estava apenas pegando a marmita. Aí ele [policial civil] falou: 'O policial apresentou as drogas e amanhã tu vai pra audiência de custódia'".
À Agência Pública, Yago Mariano da Silva contou que não prestou depoimento ao delegado e ficou o tempo todo na cela da delegacia, aguardando o desfecho da averiguação que os PMs haviam anunciado.
O delegado que assina o BO e optou por decretar a prisão em flagrante de Yago da Silva é Norberto Donizeti Bergamini, um delegado experiente da Polícia Civil de São Paulo, que atua há mais de 30 anos na instituição e chegou a receber o título de "Policial Nota 10", durante o governo de João Doria Junior (2019-2022), com homenagens no Palácio dos Bandeirantes, a sede do governo paulista.
Surpreso e inconformado com versão apresentada pelos policiais militares, restou a Yago da Silva apenas esperar pela audiência de custódia, que ocorreu no dia seguinte à prisão, na qual o juiz optou por converter a prisão em flagrante em preventiva sem que, novamente, ele tivesse a oportunidade de contar a sua versão da história.
"Na audiência de custódia, eu nem consegui falar. O juiz só perguntou onde eu estava, a minha idade e onde eu trabalhava", disse o motorista.
Por nove meses, a única forma que Silva teve para falar com a sua família foi por cartas, que levavam, em alguns casos, até um mês para chegar. As visitas da esposa e da filha, na época com um ano, aconteciam poucas vezes. Sem o emprego dele, a família passou dificuldades. Sua esposa teve que devolver a casa que alugava e voltar a morar com a mãe.
Quando o motorista de aplicativo encontrou o advogado Renan Lima Lourenço Gomes, o seu primeiro pedido foi para que ele solicitasse as imagens das câmeras corporais, que poderiam atestar a sua inocência. Recentemente, uma decisão do ministro do STF Luís Roberto Barroso obrigou a PM de São Paulo a usar as câmeras corporais nas periferias e em ações policiais. "A câmera corporal ia ser a prova concreta que eu não estava com nada", contou Silva.
O advogado fez o requerimento das câmeras corporais, conhecidas como body cams, usadas por parte do efetivo da Polícia Militar de São Paulo. No entanto, os policiais militares do 39º Batalhão da PM do Interior (BPM/I) não tinham o equipamento na época.
Lima disse à Pública que a opção foi fazer o pedido do sistema de rastreamento da viatura. "Eu vi em um dos regimentos internos [da PM] que existe um sistema de telemetria, que é o sistema vinculado entre a viatura e o GPS. Então, isso não tem como eles [PMs] desabilitarem. Até conseguem desabilitar o horário, mas não a latitude e longitude. Eu fiz essa solicitação no processo, eu pedi pro juiz me dar autorização desse sistema de telemetria e o doutor autorizou", contou o advogado.
Ao ter acesso aos endereços de circulação da viatura no dia e hora em que Yago Mariano da Silva foi abordado, o advogado teve uma surpresa: além de ter sido desviada a rota até a delegacia, os policiais teriam desligado o GPS da viatura por 32 minutos, enquanto estavam com o motorista de aplicativo no terreno baldio.
Ele avalia que "por uma ação de omissão, pela forma com que os policiais fizeram essa abordagem, eles acabaram dificultando a vida do Yago. E se eles tivessem exercido o dever legal, teriam evitado o abalo psicológico [na vida do Yago da Silva]".
Na audiência que deu a liberdade ao motorista, o juiz apontou o fato de o GPS ter sido desligado, mas que o sistema de monitoramento eletrônico da viatura acusou o endereço do terreno baldio, o que coincide com a versão de Silva. Além disso, os policiais foram questionados, em juízo, se reconheciam o local descampado para onde levaram o motorista, mas negaram.
"Tudo a corroborar em parte as palavras do réu e de sua testemunha, assim como a tese defensiva", escreveu o juiz Rodrigo Barbosa Sales, na defesa da sentença.
Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP), sob a gestão do secretário Guilherme Derrite, se limitou a respondeu que "o caso mencionado foi investigado no 3º DP de São Vicente. Após a adoção de todas as medidas de polícia judiciária cabíveis, o inquérito policial foi relatado para apreciação da Justiça" e que qualquer denúncia sobre a "conduta dos agentes envolvidos pode ser formalizada junto às corregedorias das polícias Civil e Militar, a fim de que os fatos sejam devidamente investigados".
Para a pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Juliana Brandão, o sistema jurídico penal brasileiro aponta para um perfil de seletividade em suas condenações. "Preferencialmente, a gente está falando dos homens negros e jovens. É esse perfil que geralmente sofre a primeira abordagem e que é um cliente preferencial do sistema jurídico penal no Brasil e que nos conecta com o debate mais amplo de que a gente está lidando com os atravessamentos do racismo estrutural dentro do sistema penal", explicou.
Agora que está em liberdade, Yago Silva terá a oportunidade de comemorar o terceiro aniversário da filha. "Faltavam poucos dias para o aniversário da minha filha, eu estava sendo injustiçado por uma coisa que eu não estava cometendo [â¦] Agora, no aniversário da minha filha quero fazer uma festinha."
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