A estudante Luan Gonçalves Cunha foi agredida por policiais militares enquanto se divertia na Cidade Baixa, principal bairro boêmio de Porto Alegre, entre a noite de sexta-feira, 28 de fevereiro, e a madrugada de sábado, 1º de março.
A estudante Luan Gonçalves Cunha foi agredida por policiais militares enquanto se divertia na Cidade Baixa, principal bairro boêmio de Porto Alegre, entre a noite de sexta-feira, 28 de fevereiro, e a madrugada de sábado, 1º de março. Vídeos que circulam na internet mostram Cunha rendida na calçada, com pelo menos seis policiais à sua volta. Ela é imobilizada com o joelho por um integrante da Brigada Militar (como é chamada a Polícia Militar no Rio Grande do Sul), enquanto outro agente segura seu rosto para jogar spray de pimenta diretamente em seus olhos, boca e nariz.
"Duas viaturas ou mais pararam no meio da rua, alegando que estávamos obstruindo o movimento. Comecei a conversar com um soldado, querendo entender a situação, falando sobre a temperatura [Porto Alegre enfrentou o Carnaval sob uma onda de calor], que essa deveria ser uma preocupação real por parte do estado. Até que chega um superior, que me joga contra a calçada", relatou Cunha, uma mulher transsexual de 22 anos que cursa Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Para mim, foi uma tentativa de homicídio. Jamais resisti", conta. Ela e uma amiga foram levadas ao Hospital de Pronto-Socorro (HPS) e depois ao Palácio da Polícia, de onde foram liberadas.
O ato de violência foi o prelúdio de um silêncio forçado no bairro que costuma reunir os melhores blocos de Carnaval. O prefeito Sebastião Melo (MDB) vetou a folia nas ruas internas da Cidade Baixa, especialmente o CarnaLopo, que estava sendo organizado há 90 dias pelo Povoada Gastro Bar, situado na rua Lopo Gonçalves, próximo ao local onde Cunha foi agredida. Se fosse no Rio de Janeiro, uma decisão semelhante suspenderia a saída de blocos em Copacabana. Em São Paulo, seria equivalente a acabar com a folia na rua Augusta.
Apenas um bloco improvisado, em homenagem à atriz Fernanda Torres, organizado de última hora, percorreu as ruas do bairro a despeito da proibição. A presença mais notável, porém, foi a da Brigada Militar, que trabalhou para dispersar a pequena aglomeração. A truculência da BM na Cidade Baixa é conhecida da população porto-alegrense.
A gestão de Sebastião Melo, uma coalizão composta sobretudo por integrantes do MDB e do PL, utilizou uma recomendação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) como fundamento para proibir o Carnaval na Cidade Baixa. O comunicado à imprensa, divulgado pela Prefeitura, cita que o Ministério Público e os órgãos de segurança recomendaram não autorizar "quaisquer eventos de Carnaval de Rua no interior do bairro Cidade Baixa, devido à impossibilidade de garantir segurança dos frequentadores, moradores e comerciantes". Leia o comunicado na íntegra aqui.
Já o documento do MP faz uma recomendação para cancelar o CarnaLopo para evitar a perturbação do sossego, o bloqueio de vias públicas e "demais problemas relacionados à segurança pública".
Assinado em 26 de março pela promotora Annelise Monteiro Steigleder, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente, o ofício faz menção a um histórico de reclamações de moradores e cita um relatório da Brigada Militar e um inquérito da Polícia Civil, ambos de dez anos atrás. No relatório, o então comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar alega que, após o encerramento do carnaval, "as pessoas ficam bebendo, fumando, fazendo algazarras e gritarias, promovendo brigas e discussões até altas horas da madrugada". O MP-RS também ressalta que as características da Cidade Baixa, que possui ruas estreitas e alta concentração de residências e comércios, são um problema para a saída de blocos. Não há menção ao nome das associações que fizeram reclamações.
O Povoada Gastrobar, estabelecimento que organiza o CarnaLopo, havia solicitado o uso da rua três meses antes. Mas a negativa veio somente na sexta-feira de Carnaval, 28 de fevereiro, às 10h, cerca de 50 horas antes do que seria o início dos festejos, quando já estava tudo preparado. "Havia cem pessoas envolvidas preparando a produção de nosso evento. Nosso projeto é de resgate cultural da Cidade Baixa. Queríamos que as famílias participassem, as crianças também. Toda a estrutura seria paga por nós e por nossos parceiros. A única parte da prefeitura seria liberar a via, nem as lixeiras a gente solicitava", conta uma das sócias do Povoada, Clauciane Santos.
Santos argumenta que não houve nenhum incidente negativo nos anos anteriores e que a rua ficou limpa e desobstruída logo depois dos festejos. O cancelamento resultou em prejuízo para o Povoada e para dezenas de empreendedores que participariam do CarnaLopo – pessoas que, segundo Clauciane, estavam trabalhando nisso desde setembro. Cervejarias, outros bares da quadra e food trucks ampliaram seus estoques esperando a festa. Seguranças, gradis, banheiros, trio elétrico, bandas e bloco ensaiado foram dispensados.
Ela conta que ficou sabendo, informalmente, dos planos de cancelamento por meio de uma associação de bares do bairro, que havia participado de uma reunião com a prefeitura. A informação surgiu oito dias antes da reunião entre a prefeitura, BM e MP, que resultou na recomendação negativa por parte do MP, usada como justificativa pela prefeitura para cancelar os festejos em todo o bairro.
"Quisemos levar em mãos ao MP as 1,5 mil assinaturas de uma petição online para realização de eventos no bairro, mas não fomos chamados para qualquer reunião", relatou a empresária.
Questionado sobre qual associação teria participado da reunião que embasou sua recomendação, o Ministério Público respondeu: "moradores da rua Lopo Gonçalves". Sobre se a recomendação partiu do próprio órgão ou se o órgão foi instado pela prefeitura a se manifestar, o MP não respondeu. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Eventos (SMDET) atribuiu ao Ministério Público a convocação para a reunião. Segundo a pasta, partiu do MP-RS a decisão de recomendar a proibição do evento. "Coube-nos respeitar", informou.
Em nota, o MP informou que a recomendação diria respeito apenas ao evento CarnaLopo, ainda que seu documento oficial indique a proibição do evento e de qualquer outra atividade de rua no que chama de "miolo" do bairro. O objetivo seria o de impedir a perturbação do sossego público, o bloqueio de vias internas do bairro e problemas relacionados à segurança pública.
Questionada sobre por que não apoiar um Carnaval durante o feriadão nacional, a Secretaria de Educação, Cultura e Esportes (SMECE) disse ser favorável à realização de festejos na Cidade Baixa, e que trabalhará para que os eventos de 2026 ocorram durante o calendário oficial do evento. Informou ainda que a "organização deverá se dar a partir de audiência pública com os integrantes dos blocos, dentro dos princípios democráticos de diálogo que sempre caracterizaram nossa gestão." Santos, sócia do Povoada, disse nunca ter sido procurada pela prefeitura para dialogar.
O gabinete do prefeito e a Brigada Militar não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.
Neste ano, segundo a SMECE, a gestão municipal vai apoiar cortejos fora de época e de forma descentralizada no final de março. Os eventos ocorrerão na orla, no bairro Restinga (extremo sul da capital) e nas zonas leste e norte da cidade. A publicação do edital ocorreu em 20 de janeiro e se encerra em 20 de março.
A deputada estadual Laura Sito (PT), que integra a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, afirma que recebeu diversas imagens e denúncias de cenas de brutalidade policial nas ruas de Porto Alegre durante o feriadão, além das de Luan Cunha. "Tanto o público quanto comerciantes que realizavam atividades mesmo dentro do horário da lei de silêncio sofreram diversas visitas policiais coercitivas, ainda que estivessem cumprindo as regras de funcionamento e de som", denuncia.
A Comissão de Direitos Humanos afirma que vai oficiar o Comando da Brigada Militar para que se investiguem possíveis abusos no feriadão de Carnaval. "Foram ações muito desproporcionais. As pessoas que estavam em Porto Alegre ficaram porque não puderam sair. Num calor extremo, com 30 graus à noite, mal podiam ir a um bar, curtir uma música, confraternizar com seus amigos, porque corriam o risco de sofrer violência policial", relatou a parlamentar.
Poucos blocos foram à rua de sábado até terça-feira em Porto Alegre. A orla do Guaíba, que fica localizada oficialmente no bairro Praia de Belas, vizinho da Cidade Baixa, recebeu o Bloco das Pretas no sábado. Agremiação tradicional da capital gaúcha, o grupo tem a rapper e apresentadora de TV Negra Jaque como uma de suas líderes, e realizou uma campanha de financiamento coletivo para poder pagar as estruturas necessárias para sua saída.
Na segunda-feira, dia seguinte à premiação do Oscar, um bloco em homenagem à atriz Fernanda Torres foi organizado espontaneamente e percorreu algumas ruas da Cidade Baixa. A polícia chegou a escoltar o grupo, trancando cruzamentos para a passagem dos foliões, mas não houve repressão. Na terça-feira, o Maracatu Truvão desfilou pelo Centro Histórico, bairro vizinho da Cidade Baixa, também convocado poucas horas antes da saída – o Centro também tem as mesmas características da Cidade Baixa, com ruas estreitas, residências e comércio local.
O Bloco Fusca Azul festejou no 4º Distrito, zona norte da cidade, área com configuração urbana igualmente parecida com a da Cidade Baixa, com comércios, prédios de apartamentos e residências. Um de seus organizadores, Eduardo Baldasso, tinha um cargo comissionado na Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMCEC) de Porto Alegre – segundo a pasta, ele pediu a desoneração no dia 11 de fevereiro. A reportagem questionou a secretaria sobre o porque esses blocos foram autorizados, se o bairro é parecido com a Cidade Baixa. Conforme a secretaria, além do Fusca Azul, outros sete blocos receberam autorização da prefeitura para desfilar. Os festejos foram pequenos se comparados a outros cortejos da cidade, que saem fora das datas oficiais do carnaval. Um mês atrás, no final de janeiro, o Bloco da Laje reuniu cerca de 20 mil pessoas no Parque Marinha do Brasil.
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