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A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, foi às lágrimas ao discursar no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL), o maior evento do movimento indígena no Brasil, na última sexta-feira (26). Guajajara disse que não basta existir um Ministério dos Povos Indígenas, o primeiro órgão indígena "em 523 anos de país". Para a ministra, é preciso ir além, é necessário "promover uma mudança de consciência", mudar "esse projeto de país" e, citando o racismo estrutural, "mudar esse pensamento colonial que está impregnado ainda nessa sociedade".
"[Um pensamento] que ainda olha a gente [indígenas] como incômodo. Ainda olha a gente, sim, como um empecilho. Vocês pensam que é fácil a gente chegar numa mesa [de reunião], onde todo mundo chega com suas gravatas, suas camisas brancas, e a gente chega ali apenas uma, duas [mulheres], com um cocar? E a gente enfrentar, falar de igual para igual. Dizer por que nós estamos ali."
Guajajara precisou parar o discurso, sob aplausos, para enxugar lágrimas no rosto com as costas das mãos. "Os olhares são para nós ainda atravessados. O nosso cocar ainda incomoda muita gente. Mas a gente faz de conta que não está vendo. Às vezes engole o choro. Às vezes sorri [ ]. Mas está chorando por dentro. Mas a gente vai se manter firme", disse. Deu pra ver que outras pessoas se emocionaram na plateia, formada em sua maioria por indígenas.
"Nós não podemos mais permitir que esse país ignore nossa presença. Porque lutar contra o garimpo ilegal, lutar contra a liberação [do garimpo], lutar contra a exploração de madeira que segue matando o nosso povo é muito doloroso para nós. Porque a luta que a gente faz é um enfrentamento muito pesado. A gente enfrenta o próprio Estado brasileiro. A gente enfrenta as forças econômicas, forças políticas fortes, que estão aí há muitos anos. E a gente chega ali com a nossa cara, com a nossa força ancestral, muitas das vezes ignorados. Olhares para nós atravessados, que a gente finge que não vê. Pra gente seguir defendendo a vida de cada um, de cada uma que está aqui."
O ATL completou 20 anos em 2024 e reuniu cerca de 9 mil indígenas, segundo os organizadores. O encontro foi marcado por críticas de lideranças contra o governo federal principalmente porque houve a homologação de apenas duas terras indígenas. As pressões para acelerar as demarcações também ganharam corpo a partir de declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma semana antes do ATL, ele disse que estava conversando com governadores para decidir sobre homologação de terras indígenas, um procedimento extraoficial que não está previsto no decreto que regula as demarcações.
O discurso de Guajajara expõe os problemas que o pioneiro Ministério dos Povos Indígenas (MPI) tem enfrentado neste governo Lula 3. Há uma imensa rejeição do pior Congresso Nacional eleito desde a redemocratização, cujas enormes bancadas anti-indígena, ruralista e bolsonarista aprovaram um projeto de lei (14.701/2023) a fim de tentar legalizar o "marco temporal" meses depois da tese jurídica ter sido desmontada e declarada inconstitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
Agora, o MPI enfrenta incertezas no próprio STF, que havia engavetado o "marco temporal" – tese aliás que o próprio tribunal havia criado e alimentado desde 2007. Na semana passada, o ministro do STF Gilmar Mendes decidiu pela abertura de uma suposta "conciliação" em torno da tese.
No ATL, Guajajara comentou que a ação ajuizada pelo movimento indígena e partidos de oposição contra a Lei 14.701/2023: "Infelizmente caiu na mão do ministro Gilmar Mendes, que é declarado anti-indígena, embora ele tenha votado, lá na hora do julgamento [da tese do 'marco temporal'], ele votou contra também".
Os dissabores com Legislativo e Judiciário são grandes, mas o discurso de Guajajara também se dirige ao próprio Executivo. Desde o ano passado, circulam nos bastidores em Brasília relatos de reuniões ministeriais nas quais a ministra se viu isolada ou tendo que enfrentar, no mínimo, uma má vontade de alguns de seus colegas ao cobrar certos apoios e ações de ministérios em favor de territórios indígenas.
Tais pastas deveriam ser parceiras estratégicas de primeira hora dos direitos indígenas, principalmente a Casa Civil (do ex-governador da Bahia Rui Costa), a Justiça (nas duas gestões, Flávio Dino e Ricardo Lewandowski), e a Defesa (José Múcio). O dia a dia do governo, contudo, tem se revelado muito mais amargo e frustrante para a ministra indígena.
Embora Guajajara não tenha dado os nomes aos bois, especialmente por não querer ser acusada de causar dificuldades para Lula, ecos desses problemas já vieram a público.
Conforme a Agência Pública relatou em setembro e outubro de 2023, o ministério de Flávio Dino hesitou e chegou a ameaçar suspender o papel que a Força Nacional iria desempenhar na operação de desintrusão dos invasores da Terra Indígena Apyterewa, no Pará. O território foi um dos mais desmatados durante o governo Bolsonaro.
Decisões judiciais já haviam determinado a operação na Apyterewa, mas ela foi seguidamente adiada pelo governo de Jair Bolsonaro. Apesar dos atritos que Guajajara e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) enfrentaram na relação com outros órgãos e ministérios, a operação foi enfim realizada, os invasores foram retirados e a terra indígena hoje passa por um processo de recuperação.
Os indígenas dependem do apoio de vários setores do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), como a Polícia Federal, a Força Nacional e, em menor escala, a Polícia Rodoviária Federal. Porém, ainda mais importante do que o apoio policial é que, desde o ano passado, depois que o Congresso deu um golpe branco nos poderes do MPI, cabe ao MJSP a tarefa fundamental de declaração de limites das terras indígenas, a emissão da chamada portaria declaratória. Na nova configuração, o MPI funciona como uma espécie de assessor do MJSP.
No início de abril, o portal Sumaúma relatou "um mal-estar palpável" entre Guajajara e Dino em torno da emergência na terra Apyterewa durante reunião em outubro passado. O então ministro da Justiça "abraçou uma tese de adversários do governo e dirigiu-se a Sonia como se fosse um superior hierárquico dela, em vez de – àquela altura – colega de ministério".
A chegada ao MJSP do ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski não mudou essa sensação de descolamento entre agenda indígena e outras prioridades da pasta, conforme a Pública apurou com diferentes fontes. Na primeira reunião de trabalho com o novo ministro, Guajajara encontrou um homem de poucas palavras e aparentemente com pressa de encerrar a conversa.
Com a Defesa, houve diversos problemas na execução da Operação Yanomami, determinada por Lula em janeiro de 2023. Conforme a Pública relatou diversas vezes no ano passado, os militares não atenderam a contento aos pedidos de apoio da Funai, órgão subordinado ao MPI, para distribuição de cestas básicas e correção de pistas de pouso no território.
Parte das reclamações de Guajajara deve ser lida também ainda como um reflexo da perda de prestígio e de poder político que sua pasta enfrentou no ano passado. A bancada ruralista-bolsonarista conseguiu excluir do MPI boa parte da condução do processo de demarcação das terras indígenas. O grosso do trabalho continua com a Funai, subordinada ao MPI, mas a derrota legislativa lançou dúvidas sobre o real comprometimento da bancada governista com a agenda indígena.
Em maio de 2023, Guajajara havia dito, durante uma entrevista à TV Globonews, que "o presidente Lula poderia ter entrado um pouquinho mais para impedir essa retirada [de poderes] do Ministério dos Povos Indígenas”. O bom relacionamento de Guajajara com Lula, contudo, sobreviveu a esse solavanco.
O choro-desabafo da ministra indígena expõe as dificuldades que uma liderança indígena, oriunda do movimento indígena, ainda enfrenta para tirar do papel a pauta indígena. E de ser aceita como uma interlocutora legítima e forte no tabuleiro do poder em Brasília. Como disse a ministra, fica claro que não basta a criação de um órgão específico.
No seu discurso no ATL, Guajajara fez a defesa do papel do MPI, mas também reconheceu que "quem provoca a mudança na política, quem provoca a transformação social, é o movimento organizado".
"A gente diz que a força do governo é uma, a força do movimento é outra. O movimento precisa seguir junto, cobrando, exigindo, pressionando. [ ] Os desafios são imensos. O jogo é bruto. O jogo é bruto, é desafiador. Mas a gente chegou ali não só para poder ter esse cargo [no governo] e chegar com a presença indígena. A gente chegou para aldear o Estado. A gente chegou para aldear a política. E nós não vamos aldear somente com a presença [no governo]. [ ] A nossa luta é infinita. A nossa luta é permanente."
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