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Há sempre uma guerra acontecendo em algum lugar. E essa guerra, dependente do quão central ela for no xadrez que move a geopolítica, vai decidir sobre o mundo onde viveremos daqui pra frente.
É assim com a guerra da Ucrânia; ninguém diria o contrário.
O temor de que a guerra pode "escalar" – verbo constante nas falas de políticos de países da Otan – se a Ucrânia usar armas europeias e americanas contra alvos russos, demonstra que chegamos perigosamente perto de uma terceira guerra mundial.
"A escalada constante pode levar a sérias consequências", afirmou Putin há uma semana. "Se essas consequências sérias acontecerem na Europa, como os Estados Unidos se comportarão, levando em consideração nossa paridade no campo das armas estratégicas?"
"É difícil dizer – eles querem um conflito global?"
Estive na Ucrânia por dez dias junto com outros quatro jornalistas latino-americanos, a convite da Fundação Gabo e do Ukraine Crisis Media Center (UCMC). No dia 17 de maio, saímos de carro de Varsóvia, na Polônia, para irmos até a capital, Kiev, passando por Lviv, principal cidade ao leste do país e maior refúgio das zonas de combate, que se estende por mil quilômetros no oeste. Nas próximas semanas, a partir do dia 9/6, vou contar por aqui como foi conhecer um país em guerra, no especial "Ucrânia, Uma Guerra Esquecida".
Sempre por terra – não há voos comerciais operando no país –, viajamos por mais de 2.400 quilômetros. Visitamos vilarejos marcados pela ocupação russa, prédios governamentais, centros culturais, escolas destruídas, cidades próximas à fronteira com a Bielorrússia. Não estivemos nem perto da linha de frente, mas conhecemos como se organiza a vida cotidiana num país sob ameaça existencial, e como a política e a diplomacia fazem seu esforço depois de dois anos e meio de guerra e mais de centenas de milhares de mortos de cada lado – as estimativas oficiais são pouco confiáveis –, o que sugere já ser este o conflito europeu mais mortífero desde a Segunda Guerra.
Uma pergunta me angustiava durante todo o trajeto: como essa guerra vai acabar?
Uma guerra termina quando dois homens decidem sentar à mesa. Quase sempre foi assim.
Se a guerra contra a Palestina – mais bem dito, o genocídio contra o povo palestino – desnuda a crueldade humana e a hipocrisia de um mundo em silêncio, a guerra da Ucrânia é o epicentro de um embate geopolítico no qual todos parecem querer meter a mão.
Parte da viagem foi dedicada a entrevistas com membros do governo e do Legislativo a respeito da maior cartada do governo ucraniano, a Cúpula de Paz, iniciativa conjunta com a Suíça que vai acontecer nos dias 15 e 16 de junho na cidade de Lucerna, e para o qual foram convidados representantes de 160 países.
O objetivo principal é discutir a adesão internacional a um "plano de paz" de dez pontos que inclui dispositivos para a retirada das tropas russas, a devolução de todos os territórios ocupados (incluindo a Crimeia, tomada em 2014), o julgamento das forças russas por crimes de guerra e o compromisso de não agressão futura.
Durante a cúpula serão tratados, em especial, três pontos que, segundo esperam os ucranianos, devem angariar apoio mais fácil: a devolução de crianças que foram extraditadas para a Rússia, assim como a troca de prisioneiros de guerra; a garantia de segurança alimentar com a exportação de grãos ucranianos; e a promessa de não agressão nuclear.
Mas o maior entrave é justamente que, para o evento, não convidaram o outro homem que tem de sentar à mesa.
A Rússia nem foi convidada, e nem aceitaria participar.
"É difícil entender por que a Ucrânia, sendo a vítima da guerra, está tentando inventar algo muito complexo, envolvendo muitos países neste processo", explicou em um inglês impecável o assessor presidencial Oleksandr Bevz, jovem eloquente e autoconfiante, em uma das antessalas do palácio presidencial em Kiev, guardado por soldados e pilhas de sacos de areia em todas as janelas. Era 23 de maio.
"Todas as guerras terminam na mesa de negociação. Mas nós temos dois grandes problemas", prosseguiu. "O primeiro é a Justiça. Não apenas o prejuízo econômico, de bilhões e bilhões de dólares. Mas também o sofrimento das pessoas. Também o prejuízo ambiental." Se esse prejuízo não for compensado, diz ele, "pode criar um precedente muito perigoso para o futuro."
Mas o maior problema é o segundo: "A Rússia já afirmou claramente que não vê a Ucrânia no mapa. Esse é o problema".
Neste momento, diz, com honestidade surpreendente, a Ucrânia "não pode se dar ao luxo – enquanto a guerra está acontecendo, enquanto a Rússia está agora destruindo nossa segunda maior cidade –, não podemos simplesmente dizer ‘vamos negociar'”. A Ucrânia precisa do mundo.
“Só podemos fazer isso se tivermos o apoio da comunidade internacional, que concorda sobre o que podemos sugerir à Rússia como um plano."
Por isso, explica, não se trata de uma reunião para negociar a paz com a Rússia, mas de buscar um consenso internacional sobre em que termos a paz deve ser negociada quando há uma agressão que viola as disposições da ONU. "Depois disso, estaremos prontos para convidar a Rússia", concluiu. "Não direi que será em breve, mas a Rússia virá, com certeza."
Nas últimas semanas, Vladimir Putin tem dado recados de que está preparado para um cessar-fogo, mantendo os territórios ocupados atualmente, que chegam a cerca de 20% do país vizinho. A ideia é rejeitada pelo governo de Volodymyr Zelensky.
Enquanto isso, às vésperas da Cúpula de Paz, países europeus e os EUA permitiram pela primeira vez que a Ucrânia use suas armas contra território russo, e a Rússia amplia seus ataques – mísseis e drones atingiram instalações de energia e infraestruturas no último sábado, e na segunda maior cidade ucraniana, Kharkiv, com mais de 1 milhão de habitantes, mísseis destruíram a sede de uma das maiores editoras de livros e, dias depois, bombas planadoras guiadas acertaram uma loja de material de construção, matando 16 pessoas. Alvos civis.
A paz parece ser inatingível.
O governo de Volodomyr Zelensky quer, com a Cúpula de Paz, encerrar especulações sobre planos alternativos para uma negociação. Quando nos deu a entrevista, Oleksandr Bevz estava contente com a confirmação da participação da Índia, o que poderia mudar a postura chinesa. O Brasil "havia dado sinais positivos", disse.
Quem tem centralizado a postura brasileira a respeito da guerra – que rendeu diversas críticas da comunidade internacional – é Celso Amorim. No último ano, o assessor especial da Presidência participou de diversas reuniões organizadas pela Ucrânia com assessores de segurança nacional em Copenhague, na Dinamarca, Jedá e Riade, na Arábia Saudita, e em Malta, além de uma reunião em Davos este ano. O Itamaraty tem apenas "prestado assessoria", segundo fontes.
Na última sexta, o jornal Valor, citando fonte anônima, reportou que o Brasil não deve enviar representante à cúpula, uma vez que a Rússia não foi convidada e a conferência não deve dar em nada. Uma coisa é certa: Lula não vai.
"Não é uma negociação de paz, é uma forma de conseguir apoio político para a visão ucraniana do que tem de ser o acordo", me disse um membro da chancelaria.
"Do nosso ponto de vista, não é assim que funciona", diz. "Qualquer tipo de negociação muito pública, um fórum com centenas de países, não tende a romper um impasse. Isso tende a acontecer de maneira mais discreta, em reuniões menores, a portas fechadas, com países que têm interlocução."
Nas visitas aos palácios de governo em Kiev, a frustração dos ucranianos com a posição de neutralidade do Brasil é palpável. O deputado Oleksandr Merezhko, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso, chamou de "hipocrisia" a postura do governo Lula: "Alguns países e alguns políticos dizem abertamente que são a favor da paz, a favor da diplomacia, a favor das negociações", disse. "Eles falam sobre valores e princípios, mas, na realidade, se importam com interesses econômicos, como o comércio com a Rússia e a China."
Quando perguntei à vice-ministra de Relações Exteriores, Iryna Borovets, como convencer os brasileiros e latino-americanos a nos preocupar com uma guerra distante, ela se mostrou visivelmente irritada. "É muito fácil ser amigo [da Rússia] quando você está tão distante e, de certa forma, não tem nenhuma disputa de fronteira ou traumas históricos."
A irritação é clara também nos diversos recados que Zelensky tem dado através da imprensa brasileira. Na semana passada, o presidente ucraniano falou a jornalistas latino-americanos, incluindo repórteres do Globo e da Folha, durante uma viagem organizada pelo Ministério das Relações Exteriores. Reclamou que Brasil e China "pensam primeiro nos russos e depois em nós". "Como podem priorizar essa aliança com o verdadeiro agressor?", questionou.
Era uma resposta à nota publicada em conjunto por Brasil e China no dia 23 de maio, que jogava um balde de água fria nas esperanças ucranianas sobre a cúpula. Assinada por Celso Amorim e pelo ministro do Exterior Wang Yi, em Pequim, a nota dizia que os dois países apoiariam outra conferência de paz, "realizada em um momento apropriado, que seja reconhecida tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia".
Havia nela um aviso a Zelensky: "A divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados deveria ser evitada".
"Quem ler com atenção a declaração conjunta sino-brasileira verá que há recado para todos, inclusive para a Rússia, cuja ação militar sem autorização da ONU o governo brasileiro nunca deixou de criticar", afirmou Celso Amorim à imprensa.
A nota, entretanto, falava de "não expansão do campo de batalha" em vez de devolução das áreas ocupadas. É tudo o que Putin gostaria de ouvir para se sentar à mesa. E tudo o que Zelensky não vai aceitar, para sentar-se à mesa.
A fórmula da paz buscada pelo governo de Zelensky pode não dar em nada, mas não deixa de ser uma movimentação inventiva, nova, para um impasse no qual os ucranianos têm levado a pior. Diante do "cansaço da guerra", o país consegue seguir mobilizando governos e grande parte da opinião pública mundial a seu favor.
Nisso, tem dado resultados a maneira pouco ortodoxa e até espalhafatosa do líder ucraniano – usando e abusando de redes sociais, dando entrevistas a rodo, fazendo reuniões altamente midiáticas –, segundo me confidenciou outra fonte diplomática.
"Tem ajudado em muitos aspectos", avalia. "Na América Latina, as pessoas estão distantes do conflito, não conhecem a história da Ucrânia. Então Zelensky tem a capacidade de dizer: 'Olha quem eu sou, olha quem nós somos'."
Claro, não será uma pressão através da imprensa que vai modificar a postura do Brasil, cuja posição "tem sido coerente desde o começo", segundo reiteram os diplomatas. Mas existem convergências que tornam a iniciativa ucraniana interessante até para o Brasil. Afinal, a Cúpula de Paz só foi proposta porque o Conselho de Segurança da ONU simplesmente não funciona – e sua reforma é uma das maiores bandeiras desde o primeiro governo Lula.
"É justo que em 2024 o Conselho de Segurança tenha 15 Estados, dos quais apenas cinco têm o direito de veto, que pode anular qualquer consenso na comunidade internacional?", perguntou-me o assessor de Zelensky, Oleksandr Bevz. "Portanto, eu acho – e muitos países já falam sobre isso – que devemos redesenhar e repensar como as Nações Unidas devem ser estruturadas."
Perguntei então se o sucesso da cúpula significaria um caminho para mudar a estrutura da ONU. Ele não hesitou: "Sim, seria inevitável".
Bem. Enquanto se movimentam as cartas diplomáticas no meio desta longa guerra, convido o leitor a visitar comigo um país que enfrenta um inimigo muito mais poderoso, mas que conseguiu mobilizar as maiores potências mundiais – arrastando, com esse gesto desesperado, o mundo para mais próximo da perspectiva de uma guerra mundial.
Vamos falar de tudo isso. Começando pelo trajeto, por terra, desde a fronteira com a Polônia.
Até a semana que vem.
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