Nesta segunda (4), um grupo de entidades de defesa do jornalismo ajuizou uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de tentar garantir o direito constitucional ao sigilo das fontes jornalísticas.
No último dia 16, a defesa dos jornalistas de Cuiabá Alexandre Aprá e Enock Cavalcanti impetrou um habeas corpus na Justiça local a fim de trancar o inquérito e impedir uma devassa, pela Polícia Civil, nos telefones celulares e aparelhos eletrônicos apreendidos com os jornalistas. As entidades de defesa do jornalismo pediram que a questão fosse analisada com urgência e que o inquérito fosse suspenso e arquivado "com o objetivo de assegurar direito constitucional à preservação do sigilo da fonte".
Em decisão no início da tarde desta terça-feira (5), o desembargador Jorge Luiz Tadeu Rodrigues, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, negou o trancamento do inquérito. Ele disse não ver "plausibilidade" no pedido, pois, "pelos elementos aqui constantes, não vislumbro, de plano, o aventado constrangimento ilegal".
A investigação policial contra os jornalistas começou a partir de uma queixa apresentada à polícia pelo governador bolsonarista Mauro Mendes (União).
Os profissionais dizem ser alvo de um "assédio judicial", por meio da Polícia Civil, promovido pelo governador, sobre o qual fazem uma cobertura crítica sobre ele e o seu governo. Uma comitiva de jornalistas mato-grossenses também formalizou a denúncia durante o primeiro encontro neste ano do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, vinculado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em Brasília (DF), na última sexta-feira (1º). O observatório foi criado pelo governo Lula no ano passado. O encontro foi acompanhado pela Agência Pública.
Segundo levantamento entregue pelo Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor-MT) ao coordenador do Observatório do MJSP, o secretário Nacional de Justiça, Jean Uema, atualmente há pelo menos 18 jornalistas na mira de inquéritos da Polícia Civil. De acordo com o Sindjor-MT, isso representa um "flagrante uso da máquina pública" contra críticos do governo Mendes.
Como pano de fundo do caso está a Operação Fake News 3, realizada em 6 de fevereiro passado pela Polícia Civil, que teve como alvos, além de Aprá e Cavalcanti, o empresário e comunicador Marco Polo Pinheiro.
Em nota enviada à Pública nesta terça-feira (5), a Secretaria de Estado de Comunicação (Secom) de Mato Grosso encaminhou a seguinte manifestação do governador Mauro Mendes, na íntegra: "Qualquer cidadão brasileiro, seja ele político ou não, tem assegurado o direito de processar todos aqueles que praticarem o[s] crime[s] de calúnia e difamação. O governador de Mato Grosso exerce esse direito, recorrendo ao Judiciário para processar aqueles que mentiram, difamaram e caluniaram. Isso é perseguição ou o exercício de um direito constitucional?".
Entre as denúncias apresentadas ao Ministério da Justiça, há o rumoroso caso de perseguição contra Alexandre Aprá.
A trama foi objeto de reportagem da Pública no ano passado e envolveria a contratação de um detetive particular supostamente responsável por forjar um falso envolvimento de Aprá com tráfico de drogas ou pedofilia.
Durante o encontro no Ministério da Justiça, a comitiva de jornalistas mato-grossenses afirmou que o governo Mauro Mendes usa o aparato investigativo e a estrutura da Delegacia de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) da Polícia Civil para "criminalizar" os críticos do governo.
Foi a pedido da DRCI e do Ministério Público que a Operação Fake News 3 foi desencadeada. No relatório do inquérito – base da operação, subscrito pelo delegado Ruy Guilherme Peral, da DRCI – a Polícia Civil aponta que Aprá, Enock e Marco Polo formaram uma suposta "associação criminosa" a fim de caluniar e perseguir Mauro Mendes e o desembargador do Tribunal de Justiça Orlando de Almeida Perri.
A DRCI diz que Aprá, Cavalcanti e Pinheiro repassaram, em sites e via WhatsApp, uma reportagem do site Repórter Brasil que falava de suspeitas sobre decisões judiciais pró-garimpeiros em Mato Grosso.
Na operação contra Aprá, Cavalcanti e Pinheiro, a polícia tinha autorização para apreender telefones celulares, notebooks, tablets e até videogames dos investigados. A decisão judicial que permitiu a operação autorizou também a quebra do sigilo telemático dos equipamentos, que seguem sob a guarda da polícia. Para os jornalistas, tal fato ameaça o sigilo de suas fontes.
Na conclusão do inquérito, o delegado Peral pediu ainda a prisão preventiva de Aprá, que foi negada pelo juiz João Bosco Soares da Silva, da 10ª Vara Criminal, responsável por autorizar a Operação Fake News 3.
A comitiva mato-grossense pediu também ao Ministério da Justiça uma investigação sobre a legalidade da compra e do uso do aparelho de espionagem GI2-S, adquirido pelo governo Mauro Mendes sem licitação em 2022 – compra já detalhada pela Pública no ano passado.
O GI2-S é fabricado pela companhia israelense Cognyte, a responsável pelo programa First Mile – que a Polícia Federal suspeita ter sido usado ilegalmente pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro, foco do chamado escândalo da "Abin paralela".
Conforme revelado pela Pública, o que o governo de Mato Grosso informou a órgãos de controle sobre o potencial uso do GI2-S se contradiz com a real capacidade do aparelho – que opera de modo a "não revelar para as operadoras de telefonia celular que a rede está sendo monitorada", "permitindo atividade secreta e uso dissimulado do aparelho" celular monitorado.
O hackeamento se torna possível também porque o GI2-S, da Cognyte, permite invasões ativas via "entrega automática de um SMS predefinido para qualquer telefone que seja capturado" – técnica similar ao phishing, que é o envio de comunicações fraudulentas de modo a parecer que vêm de fontes confiáveis, invadindo proteções do aparelho com um pretenso consentimento do usuário.
Esse é um ponto relevante, pois o governo de Mato Grosso defendeu sua compra perante o Ministério Público Estadual (MPE) alegando que o aparelho de espionagem era uma "ferramenta passiva".
Segundo apurado pela Pública, o deputado estadual de Mato Grosso Valdir Barranco (PT) enviou um ofício em outubro de 2023 ao então ministro da Justiça Flávio Dino pedindo apoio para esclarecer o uso da ferramenta de espionagem GI2-S pelo governo Mauro Mendes. O caso segue aberto, sem conclusão, no MJSP.
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