Geral Câmara dos Deputados

A Câmara de Hugo Motta criar um semipresidente sem plebiscito é golpe contra a democracia

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h.

Por Em Sergipe

12/02/2025 às 06:57:39 - Atualizado há

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.

Você compraria um carro usado de um deputado youtuber do PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro? E de um parlamentar, encontrável em todo o Centrão, enrolado com as emendas secretas, negacionista da ciência e da emergência climática, anti-indígena, antiambiental, misógino, xenófobo, armamentista e ruralista? Se a resposta for não, então por que você haveria de dar a essas pessoas superpoderes sobre os rumos da República ao criar a figura de um semipresidente que dividirá seu poder com o Congresso? No mínimo, você precisa ser ouvido sobre isso.

Com o apoio do novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), um grupo de parlamentares pretende instituir um tipo de parlamentarismo no Brasil que valeria a partir de 2030 – escondido sob o nome autoexplicativo de semipresidencialismo. Os deputados pretendem fazer a profunda alteração no texto constitucional sem antes passar por uma consulta ampla e informada à população.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 2/2025 foi protocolada na Câmara dos Deputados na semana passada pelo deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) e subscrita por 179 parlamentares. Ela primeiro deverá ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça. Para ser aprovada, precisa de três quintos dos votos do plenário (308 deputados), em dois turnos de votação.

Hauly chamou o atual sistema de governo de "presidencialismo arcaico" e argumentou, em entrevista à agência oficial de notícias da Câmara, que o novo modelo impedirá que o país "enfrente as prolongadas e incertas crises institucionais que antecederam as quedas de [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff] e acabam afetando também o quadro econômico brasileiro". Será? Vejamos o exemplo da França, que adota um tipo de semipresidencialismo: o país está envolvido numa extensa crise política que mobiliza o país desde junho de 2024.

Segundo a BBC News, que citou um monitoramento da Universidade de Oxford (Reino Unido), mais de 50 países adotavam, em 2021, o semipresidencialismo. É possível acreditar que os parlamentares tenham bons argumentos para defender a ideia. O debate obviamente é válido, pode prosperar, mas é exaustivo e sem respostas fáceis, longe de ser um consenso. Há cientista político dizendo que o semipresidencialismo reforça, e não enfraquece, o papel do presidente da República porque lhe dá o poder de dissolver o Parlamento, enquanto outros dizem que o semipresidencialismo de modo algum garante mais estabilidade política.

Numa democracia, temas assim não devem ser interditados. Mas quando a Câmara, em especial esta nossa Câmara – digo que temos o pior Congresso desde a redemocratização –, decide empurrar um novo regime de governo goela abaixo, sem consultar os brasileiros, opera simplesmente um golpe parlamentar contra a democracia.

Se a alteração passar no Congresso, será a mais profunda alteração do texto da "Constituição Cidadã" desde que foi aprovado em 1988. Certamente a população não se deu conta ainda do alcance dessa novidade sobre, por exemplo, a execução das políticas públicas no Brasil hoje essenciais para a população mais pobre, como o Sistema Único de Saúde (SUS). Ou as universidades públicas. Ou o programa Bolsa Família. Ou os direitos das minorias, como a demarcação de terras indígenas. Sobre tais assuntos, não é possível esperar muito de um primeiro-ministro que dependa dos humores deste nosso Congresso.

Se aprovada, a PEC dará poderes extraordinários para o Congresso. Será criada a figura do primeiro-ministro nomeado pelo presidente da República após consulta aos membros do Congresso maiores de 35 anos. Conforme um resumo de O Estado de S. Paulo, a PEC torna "o premiê responsável por formular o plano de governo, exercer a direção superior da administração federal, ter a gerência do Orçamento, indicar ministros, promover e extinguir cargos públicos federais, além de dar mais autonomia para a Câmara".

O povo que escolhe seu presidente a cada quatro anos há mais de três décadas de forma livre e soberana, depois do tenebroso inverno da ditadura civil-militar, ainda não entendeu que o Congresso pretende tornar esse mesmo presidente uma figura muitas vezes decorativa, com poderes limitados.

Nos últimos 60 anos, os brasileiros foram ouvidos duas vezes sobre a eventual mudança do sistema político do país. Em ambos os casos, o parlamentarismo foi sonoramente rejeitado. Em abril de 1993, 36,6 milhões de brasileiros votaram pelo presidencialismo (55,6%), mais do que o dobro dos 16,4 milhões de apoiadores do parlamentarismo (24,9%).

A vitória do presidencialismo foi ainda maior em janeiro de 1963, quando 76,9% dos brasileiros rejeitaram o parlamentarismo em um referendo convocado para saber se o então presidente, João Goulart, deveria continuar submetido ao parlamentarismo. Desde setembro de 1961, o país vivia sob esse regime que fora instituído de baixo para cima pelo Congresso exatamente por uma emenda à Constituição, a quarta desde a promulgação da Carta Magna de 1946.

O parlamentarismo veio para enfraquecer Goulart, então vice-presidente eleito que estava prestes a assumir a Presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Os militares não queriam a posse do "esquerdista" Goulart. Ele estava em viagem oficial à China quando Jânio renunciou. Os ministros militares então disseram ao Congresso que ele não deveria retornar ao país, sob o falso argumento de risco à segurança nacional.

O então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola iniciou um movimento, que ficou conhecido como a "Campanha da Legalidade", a fim de garantir o retorno e a posse de Goulart. O parlamentarismo foi então adotado como um remédio emergencial para a crise política. Um ano e quatro meses depois, o povo o revogou com 76,9% de votos.

Anos depois, Brizola escreveu que o Congresso "violou" a Constituição, "de madrugada", ao "retirar poderes legítimos do presidente". O parlamentarismo de 1961 foi o preâmbulo golpista do ataque final à democracia desencadeado em março de 1964. Que o mesmo tema volte à baila após a tentativa de golpe bolsonarista de 2022 deveria gerar muita reflexão. No Brasil, ideias de mudança drástica no regime de governo e golpe andam lado a lado. Só coincidência?

O Brasil decidiu também não adotar o parlamentarismo quando confeccionou sua "Constituição Cidadã" de 1988. O então presidente José Sarney recebeu, durante os trabalhos da Constituinte, uma proposta apresentada pelos senadores José Richa (PMDB-PR) e Cid Carvalho (PMDB-CE). Eles aceitavam um mandato de cinco anos para o presidente desde que, ao final do período, o parlamentarismo fosse instituído no Brasil.

Sarney topou a ideia, mas o então senador Mário Covas, um dos fundadores do PSDB, foi contrário e o acordo político não ocorreu. O episódio está narrado no livro 1988: Segredos da Constituinte, do grande repórter Luiz Maklouf Carvalho (1953-2020).

O tema parlamentarista retorna agora à discussão com outros apoiadores, mas igualmente poderosos. O mais notável é o ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Ocorreram muitas coisas incríveis na política brasileira desde 2016, quando o Congresso derrubou Dilma da Presidência. Mas poucas foram tão impressionantes quanto um ofício enviado de "Autoria do Cidadão Gilmar Mendes" – é assim que está escrito no Ofício "S" nº 79, de abril de 2017 – pelo qual encaminhou ao Senado uma "minuta de Proposta de Emenda à Constituição".

O texto, segundo revelado na época pelo site Poder360, continha uma regra "que barraria eventual terceiro mandato de Lula", caso ele tivesse se candidatado em 2018. O parágrafo único do artigo 82 dizia que "ninguém poderá exercer mais do que dois mandatos presidenciais, consecutivos ou não". A proposta acabou não prosperando dentro do Senado.

Nos últimos anos, por diversas vezes Mendes fez a defesa do semipresidencialismo. Em 2020, sugeriu, em uma videoconferência, que ele fosse instituído "sem plebiscito". No final do mês passado, o ministro antecipou que o semipresidencialismo "já está na agenda" do meio político em 2025. Contou que ele, o ex-presidente Michel Temer (PMDB-SP) e "outros" "discutimos no Brasil, um pouco lá atrás, e chegamos a formular um projeto de semipresidencialismo".

O STF é "o guardião da Constituição, a lei maior do Brasil", como diz o próprio tribunal. Que um de seus ministros faça textos e articulações para emendá-la não deixa de ser notável.

Mendes obviamente não está sozinho nessa caminhada. Além de Temer, o ex-presidente da Câmara Arthur Lira e o ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves (PSDB) defendem o semipresidencialismo. Nesta segunda-feira (10), outro ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PRD-RJ), artífice da derrubada de Dilma e agora intitulado "articulista", escreveu que o semipresidencialismo tem a sua "simpatia".

Cunha teve o mandato cassado em 2016 em meio à Operação Lava Jato, após a revelação de que tinha contas no exterior, caiu em desgraça momentânea, mas segue bastante influente nos bastidores da política. Motta e Cunha são aliados há tempos. Em seu livro Tchau, querida, Cunha assim descreveu Motta: "Era um bom quadro. Cumpridor de compromissos. Bastava combinar as regras".

Ao defender o semipresidencialismo, Cunha reflete uma aspiração de setores da Câmara tornada pública mais recentemente desde pelo menos 2022. Em outubro daquele ano, após seis meses de atividade, um grupo de trabalho da Câmara recomendou que o semipresidencialismo entrasse em vigor em 2030, desde que precedido de um plebiscito e uma "campanha didática do Tribunal Superior Eleitoral".

O relatório do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) sugeriu, em uma minuta, como deveria ser a pergunta do plebiscito: "O Brasil deve adotar o sistema de governo semipresidencialista, em que o presidente da República é eleito diretamente pelo povo e indica o nome de um primeiro-ministro para a aprovação do Congresso Nacional?".

Formulada dessa maneira, a pergunta é capciosa. Esconde todas as consequências reais do sistema semipresidencialista. Mas, nesse caso, uma pergunta é melhor que nenhuma. Quem tem medo da resposta?

Comunicar erro

Comentários Comunicar erro

Em Sergipe

© 2025 2024 - EmSergipe - Todos os direitos reservados
WhatsApp: 79 99864-4575 - e-mail: [email protected]

•   Política de Cookies •   Política de Privacidade    •   Contato   •

Em Sergipe